PENSAMENTO PLURAL A cidade entregue ao absurdo, por Palmarí de Lucena

O escritor Palmarí de Lucena alerta como João Pessoa “vive um processo silencioso de degradação, onde ônibus e caminhões ocupam ruas estreitas, transformando bairros e áreas históricas em corredores de desordem”. Segundo Palmarí, a ausência de regras e fiscalização enfraquece o espaço urbano e ameaça áreas sensíveis como a Mata do Altiplano. E ainda: “O turismo predatório pressiona moradores e destrói a paisagem. Para completar a afronta, os responsáveis pelo caos ainda pedem promoção política. Quando a cidade recusa o absurdo, começa a se recompor.” Confira íntegra...

Há cidades que não se perdem por tragédias, mas por tolerância — aquela tolerância morna, repetida, que transforma exceções em rotina e rotina em destino. João Pessoa vive hoje essa transição perigosa: um pacto informal com o absurdo urbano.

A desordem deixou de ser eventual. Tornou-se paisagem.
Na orla, no Centro Histórico, nas transversais do Cabo Branco, multiplicam-se cenas que nenhum planejamento sério admitiria. Ônibus de turismo tratam ruas estreitas como terminais improvisados. Caminhões circulam como se bairros fossem pátios de descarga. Veículos pesados estacionam onde querem, bloqueiam cruzamentos, ocupam espaços projetados para pedestres e moradores.

Nada disso é surpresa.
É repetição diária.
É método silencioso.

As normas existem, mas evaporam na prática. Ruas se tornam corredores dominados por quem pesa mais. Bairros são sacrificados por uma lógica imediatista que se confunde com política pública. O patrimônio histórico perde escala e dignidade. A convivência urbana se deteriora sob o peso de toneladas depositadas onde nunca deveriam estar.

E o paradoxo mais perturbador é justamente esse: quando se tenta ordenar, descobre-se que não há registro; quando se tenta punir, não há responsável; quando se tenta cobrar, não há quem responda. O sistema parece projetado para a fuga da responsabilidade — um labirinto administrativo onde a única constante é a ausência.

Enquanto isso, a Mata do Altiplano evidencia o que acontece quando a omissão se torna política: cercas derrubadas, invasões silenciosas, avanço sobre vegetação frágil. Um dos últimos respiros verdes da cidade transforma-se em zona aberta a danos contínuos, como se fosse terreno de ninguém.

O turismo, que poderia ser uma força positiva, degenera em sua versão mais predatória. Não distribui benefícios; distribui pressão. Pressão sobre ruas, sobre moradores, sobre ecossistemas. Uma cidade que deveria ser viva e respirável torna-se cenário consumível — e descartável.

E é justamente nesse contexto que surge a contradição máxima:
os arquitetos da desordem apresentam-se como guardiões da ordem.
Os mesmos que permitiram o caos reivindicam posições mais altas, como se o descontrole que patrocinaram fosse credencial para promoção. Há nisso uma ironia amarga: exige-se que o cidadão, já penalizado pelo abandono, ainda ofereça aplauso.

É a lógica perfeita do absurdo: depois de impor danos à cidade, pede-se gratidão; depois de desorganizar o espaço público, exige-se legitimidade; depois de fragilizar a vida urbana, solicita-se coroação.

É a cena política em que se acrescenta ofensa ao incômodo — onde a afronta se sobrepõe ao prejuízo, e a cidade, já agredida pela desordem, é convidada a celebrá-la.
É o momento em que a erosão do cotidiano se transforma, com espantosa naturalidade, em plataforma de ascensão.

Mas cidades não precisam aceitar esse enredo invertido.
Há sempre escolha.
Há sempre o instante em que se diz basta, em que o absurdo deixa de ser tolerado, em que o interesse coletivo volta a ocupar o lugar que lhe pertence.

João Pessoa merece mais do que improvisos, slogans e o ritual de transformar desorganização em virtude pública. Merece ordem, planejamento, cuidado — e o compromisso de nunca tratar destruição como credencial.

Porque quando se soma afronta ao prejuízo, a cidade perde duas vezes.
Quando recusa o absurdo, começa a se recompor.

 

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