
O escritor Palmarí de Lucena trata, em seu comentário, da controvérsia sobre a flexibilização do gabarito na orla de João Pessoa que “expôs um padrão recorrente da administração pública: decisões estruturais tomadas sem debate amplo e corrigidas apenas após intervenção judicial. Embora a revogação do dispositivo tenha restabelecido a legalidade, o episódio revelou a complacência do Legislativo e a fragilidade da convicção política na proteção ambiental”. Preservar a orla não é negar progresso, mas evitar a privatização de perdas coletivas em nome de ganhos imediatos. Confira íntegra...
A controvérsia sobre a flexibilização do gabarito na orla de João Pessoa expôs mais do que um desacordo técnico sobre índices urbanísticos. Revelou um padrão conhecido na administração pública brasileira: decisões estruturais tomadas em baixa intensidade de debate, seguidas de correções apressadas quando o sistema de Justiça intervém. No meio do caminho, a cidade paga o custo da ambiguidade institucional.
A Lei do Gabarito — prevista na Constituição Estadual — nunca foi um capricho estético. Ao limitar alturas na faixa de 500 metros da orla, com escalonamento de 12,90 metros a 35 metros, ela protege um território reconhecido como patrimônio ambiental, cultural, paisagístico, histórico e ecológico. Trata-se de um instrumento de interesse difuso, cuja razão de existir é simples: a orla não é mercadoria comum; é bem público sensível e irreversível.
Ainda assim, a tentativa de flexibilização prosperou. E prosperou porque contou com complacência política. O Executivo municipal, sob a gestão de Cícero Lucena, permitiu que um dispositivo da Lei de Uso e Ocupação do Solo abrisse uma brecha normativa capaz de esvaziar, na prática, a proteção do gabarito. A correção posterior — por meio de Medida Provisória que revogou o artigo questionado pelo Ministério Público e alinhou o município à decisão do Tribunal de Justiça da Paraíba — foi necessária e juridicamente adequada. Mas não apaga o fato político: a exceção foi criada antes de ser desfeita.
O problema se agrava quando se observa o comportamento do Legislativo. A Câmara Municipal de João Pessoa, que deveria funcionar como instância de contenção, fiscalização e qualificação do debate, optou por uma cumplicidade silenciosa. Não faltaram alertas técnicos, nem manifestações do Ministério Público, nem exemplos de outras capitais que perderam sua orla para a verticalização predatória. Faltou, isso sim, disposição para contrariar interesses organizados.
O silêncio dos vereadores não é neutro. Em urbanismo, ele opera como autorização tácita. Cada “ajuste pontual” aprovado, cada exceção tolerada, contribui para a erosão da regra geral. É assim que se institucionaliza o desvio: não por grandes rupturas, mas pela soma de pequenas concessões, quase sempre justificadas em nome do desenvolvimento.
O recuo do Executivo, agora respaldado pela Justiça, recoloca a cidade nos trilhos legais. Mas a lição institucional permanece incômoda: João Pessoa só foi protegida quando o Judiciário precisou intervir. Isso revela uma falha de origem. A defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado — para as gerações presentes e futuras — não deveria depender de correção judicial, mas de convicção política.
Preservar o gabarito da orla não é ser contra o progresso. É recusar um modelo de urbanização que concentra ganhos privados e distribui perdas coletivas: sombras permanentes, pressão sobre infraestrutura, descaracterização da paisagem e expulsão indireta de moradores. Cidades que abdicam de seus limites em nome do imediatismo costumam descobrir tarde demais que perderam aquilo que as tornava únicas.
O poder público corrigiu o texto da lei. Falta corrigir o método. Enquanto decisões estruturais continuarem a ser tratadas como detalhes técnicos — e vereadores seguirem protegidos pelo silêncio — a cidade seguirá exposta. Em política urbana, como na orla, o dano mais profundo não vem do barulho das obras, mas do silêncio que as antecede.
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