Em sua crônica de viagem pelos Países Bálticos, o escritor Palmarí de Lucena escreve omo a Estônia transformou-se em modelo global ao digitalizar serviços públicos com simplicidade, transparência e foco no cidadão. Desde os anos 90, investiu em educação digital e criou o X-Road, que conecta dados de forma segura, além da e-Residência, berço de unicórnios como Bolt e Wise. “No Brasil, a inércia do Congresso impede avanços semelhantes. Falta vontade política para modernizar o Estado e devolver dignidade e tempo ao cidadão”, pontua. Confira íntegra…
Em um pedaço discreto do mapa europeu, às margens do Báltico, o futuro deixou de ser promessa para se tornar rotina. A Estônia, com pouco mais de 1,3 milhão de habitantes, reinventou a relação entre o cidadão e o Estado ao dissolver a burocracia no mundo digital. Ali, abrir uma empresa, declarar impostos ou renovar uma receita médica não exige filas, carimbos nem papel: basta um cartão de identidade digital, tão natural para o estoniano quanto o próprio nome.
O segredo atende pelo nome de X-Road, a espinha dorsal de um sistema que interliga bancos de dados públicos e privados de forma segura e transparente. O cidadão não precisa repetir informações; o sistema se encarrega de fazer circular os dados. E a confiança nasce justamente dessa transparência: cada acesso a informações pessoais fica registrado, permitindo que o titular saiba quem consultou seus dados e por quê. A lógica é simples, mas revolucionária – o Estado existe para servir, não para ser servido.
Essa virada não aconteceu por acaso. Após a independência da União Soviética, nos anos 90, o país, com recursos escassos, viu na tecnologia a alavanca para construir eficiência. O projeto Tiger Leap conectou escolas à internet e colocou crianças de sete anos em contato com a programação. O investimento precoce em educação digital criou gerações preparadas para transformar a promessa em realidade.
Hoje, a Estônia atrai empreendedores do mundo inteiro com o programa de e-Residência, que já permitiu a abertura de mais de 27 mil empresas totalmente digitais por estrangeiros. Não por acaso, o país se tornou berço de unicórnios como a Bolt e a Wise. E agora avança mais um passo: os serviços proativos. Uma criança nasce e o sistema já ativa automaticamente benefícios e registros. A digitalização deixou de ser reação; tornou-se antecipação.
A experiência estoniana revela uma lição essencial: não basta digitalizar processos complicados; é preciso simplificá-los antes. A tecnologia funciona quando se coloca a vida das pessoas no centro. O que se vê na Estônia não é apenas modernização, mas a construção de uma sociedade em que o tempo do cidadão é valorizado e devolvido a ele.
E aqui o Brasil pode encontrar um espelho. Em vez de informatizar a velha burocracia, precisamos redesenhar o Estado para que sirva ao cidadão. Uma identidade digital única poderia substituir a multiplicidade de cadastros e documentos. A integração de bases de dados, como no X-Road, pouparia esforços redundantes. Um registro transparente de acessos a informações pessoais criaria confiança em instituições tão carentes de credibilidade. A aposta na educação digital desde cedo democratizaria competências hoje restritas a poucos. E a transformação de serviços sociais em ações proativas — benefícios que chegam automaticamente, sem peregrinação em balcões — devolveria dignidade a milhões de brasileiros.
Mas o Brasil continua refém da inoperância de seu Congresso. Em vez de debater seriamente a digitalização da economia ou a integração da inteligência artificial às escolas, temas decisivos para o futuro, parlamentares gastam energia em disputas paroquiais, manobras regimentais e projetos que servem mais a corporações ou interesses eleitorais do que ao cidadão comum. É a política do curto prazo que sacrifica gerações inteiras.
Se a pequena Estônia, com poucos recursos, ousou sonhar grande e colher resultados, o Brasil, com sua escala continental e criatividade abundante, poderia ir muito além. O que falta não é capacidade técnica, mas vontade política. O futuro não espera – ou o Congresso desperta para a urgência da transformação digital, ou continuaremos presos ao passado, enquanto outros colhem os frutos da ousadia.
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