PENSAMENTO PLURAL A guerra invisível – narcoterrorismo, militarização e lucros ilícitos, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena analisa como o combate às drogas se transformou em pretexto político e instrumento de poder. “Critica a tentativa de enquadrar o tráfico como “narcoterrorismo”, que amplia a violência estatal e a impunidade, e denuncia o envolvimento do crime em eleições locais”, comenta. Com a PEC da Segurança Pública paralisada, o texto alerta que a militarização favorece elites e perpetua desigualdade, medo e corrupção. Confira íntegra…

Entre o estrondo dos helicópteros e o silêncio dos gabinetes climatizados, o combate às drogas assume duas faces distintas. Nas periferias, soldados e blindados invadem becos em nome da “segurança nacional”. Nos bairros nobres, o tráfico se reinventa, veste terno e deposita lucros em contas bancárias discretas. Essa dualidade expõe o abismo entre o discurso de guerra e a realidade econômica do narcotráfico — um sistema que, sob a bandeira da ordem, mantém-se lucrativo e socialmente assimétrico.

A recente tentativa de classificar o tráfico como “narcoterrorismo”, tanto no Brasil quanto em políticas externas que inspiram essa retórica, representa um salto simbólico perigoso. A designação promete firmeza, mas entrega opacidade: ao enquadrar o tráfico na lógica do terrorismo, o Estado amplia seu poder de ação e reduz sua obrigação de prestar contas. É uma transformação semântica que converte o criminoso em inimigo interno e o abuso em instrumento legítimo de defesa.

Essa estratégia não é nova. Nos Estados Unidos, ordens executivas recentes rotularam cartéis como organizações terroristas estrangeiras, ampliando o alcance penal e justificando o uso de forças especiais. No Brasil, o Projeto de Lei 724/25 tenta seguir caminho semelhante, estendendo a Lei Antiterrorismo para o campo do tráfico. Sob a aparência de rigor, esconde-se o risco de uma “licença para matar”, especialmente quando operações em favelas são conduzidas sem critérios claros de proporcionalidade. Organizações como a Human Rights Watch alertam para o aumento de mortes em incursões policiais e a falta de responsabilização em episódios de força excessiva.

Enquanto isso, o mercado das drogas permanece resiliente. Relatórios da Global Initiative mostram que, mesmo com investimentos maciços em repressão, o consumo não diminui — ele apenas se desloca. No Rio de Janeiro, as milícias expandem suas fontes de renda e o tráfico adapta-se à economia formal, lavando dinheiro em imóveis, hotéis, câmbio e até fundos de investimento. Dados do COAF e estudos do Instituto Igarapé revelam como esses lucros se infiltram no circuito financeiro, longe dos olhares das operações armadas. A guerra, portanto, não termina: ela muda de endereço e de roupagem.

Há, porém, um novo e preocupante desdobramento. Já existem fortes indícios de envolvimento do narcotráfico nas eleições municipais, por meio da troca de favores entre candidatos e grupos criminosos que controlam determinadas comunidades. Em alguns casos, líderes locais permitem a realização de campanhas dentro de áreas dominadas, em troca da posterior nomeação de seus indicados para cargos de confiança em prefeituras. Trata-se de uma contaminação silenciosa do processo democrático — uma forma de captura territorial da política, que converte o voto livre em mercadoria e a autoridade pública em refém.

Enquanto isso, o Congresso Nacional permanece inerte diante de pautas essenciais. A chamada PEC da Segurança Pública (PEC 18/2025) — entregue ao Congresso em 23 de abril de 2025 e aprovada pela CCJ da Câmara em 15 de julho do mesmo ano — foi apresentada como um marco para reorganizar as forças de segurança e integrar políticas de prevenção, inteligência e controle de armas. No entanto, até o momento, encontra-se paralisada, sem avanço real. Projetos que poderiam fortalecer a rastreabilidade de munições, proteger policiais e limitar o poder das facções são deixados de lado. Em contrapartida, gasta-se tempo e energia na tramitação de leis de anistia e de blindagem parlamentar — medidas que parecem mais voltadas à autopreservação do poder do que ao interesse coletivo. A pergunta é inevitável: se o narcotráfico tem recursos para eleger representantes, esses parlamentares estariam igualmente blindados contra a punição por seus atos ilícitos?

A militarização do combate às drogas serve, muitas vezes, mais à política do que à sociedade. O rótulo de “narcoterrorismo” gera manchetes, mas não políticas eficazes. A retórica bélica alimenta o medo, enquanto as causas estruturais — desigualdade, exclusão social, racismo institucional — permanecem intocadas. Em vez de promover segurança, reforça-se um ciclo de violência que mata os pobres, enriquece intermediários e fortalece as engrenagens financeiras que sustentam o próprio tráfico.

Sair dessa armadilha exige coragem cívica e lucidez política. Nenhum Estado vence uma guerra que combate sintomas e ignora causas. É preciso substituir a lógica do inimigo pela lógica do cidadão — enxergar o dependente químico como paciente, a favela como comunidade, e o policial como servidor da lei, não como soldado de trincheira. Só então a sociedade poderá afirmar, sem retórica, que combateu o tráfico e venceu a guerra — não com balas, mas com justiça, dignidade e verdade.

 

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