PENSAMENTO PLURAL A herança da anistia e o preço da impunidade, por Palmarí de Lucena

A história brasileira mostra um ciclo de golpes seguidos por anistias, sempre em nome da “pacificação nacional”. Do perdão a rebeldes no século XX à Lei da Anistia de 1979, consolidou-se a cultura da impunidade. Segundo o escritor Palmarí de Lucena, “hoje, repete-se a cena: após o 8 de janeiro, projetos no Congresso e discursos de governadores direitistas tentam transformar criminosos em vítimas. Mas a Constituição é clara: crimes contra a democracia exigem punição”. Confira íntegra...

Há um traço que percorre a história política do Brasil como um rio subterrâneo: a facilidade com que transformamos atentados, golpes e ameaças contra a democracia em capítulos apagados pelo perdão. Ao longo do século XX e já no XXI, a palavra anistia foi invocada não apenas como gesto de pacificação, mas como atalho para a impunidade.

No início do século passado, após rebeliões militares e insurreições civis, presidentes estenderam a mão do perdão aos mesmos homens que haviam disparado contra o Estado. A Revolta de 1924, a Intentona Comunista de 1935 e as investidas integralistas foram seguidas por decretos que reabilitaram combatentes e reintegraram oficiais. Com a queda do Estado Novo, em 1945, uma anistia ampla foi proclamada: beneficiou comunistas, integralistas e conspiradores militares, como se todos tivessem o mesmo peso na balança da história.

Nos anos seguintes, na frágil democracia de 1946 a 1964, a tradição se repetiu. Tentativas de golpe, quarteladas e insubordinações eram punidas num dia e anistiadas no seguinte, numa coreografia de ameaça e perdão que minava a própria ideia de disciplina republicana. O resultado foi a pavimentação da estrada que levaria ao golpe de 1964, talvez o mais devastador da nossa memória.

A ditadura militar, erguida sobre o desprezo às instituições democráticas, não deixou de praticar a mesma lógica. Perseguia opositores, cassava mandatos e enviava milhares ao exílio, mas também distribuía perdões seletivos a militares dissidentes e políticos estratégicos. O grande marco veio em 1979: a Lei da Anistia, fruto da pressão de familiares de presos e exilados, abriu as portas da liberdade para os perseguidos. Mas seu texto “amplo, geral e irrestrito” selou também o esquecimento dos crimes de tortura, sequestro e assassinato praticados por agentes do Estado. Foi uma anistia que libertou e silenciou, que reconciliou e ao mesmo tempo blindou os algozes.

O século XXI herdou essa contradição. A Constituição de 1988 consolidou a anistia de 1979, e sucessivos governos a trataram como cláusula pétrea, mesmo diante de apelos internacionais por justiça. O país viu florescer novas anistias setoriais, sobretudo a policiais militares e bombeiros que, em motins e greves ilegais, desafiaram a ordem democrática. O gesto político repetiu o roteiro: o perdão como moeda de pacificação imediata, sem olhar para as consequências de longo prazo.

E chegamos ao 8 de janeiro de 2023, quando a democracia recém-testada nas urnas foi atacada com violência em Brasília. O Supremo Tribunal Federal reagiu com firmeza: centenas de condenações, penas exemplares. Mas no Congresso e nos governos estaduais já se articulam manobras para conceder perdão, indulto ou anistia aos envolvidos. Sob o pretexto de reconciliação e pacificação, parlamentares e governadores de direita falam em perseguição política e tentam obscurecer um fato cristalino: crimes foram cometidos contra o Estado Democrático de Direito. A Constituição é clara — tais atos devem ser julgados e punidos, não varridos para debaixo do tapete.

O Brasil parece preso a um padrão: golpes sucedem-se, e logo em seguida uma anistia se encarrega de dissolver responsabilidades. Essa tradição, que muitos chamam de “pacificação nacional”, tem um custo oculto: a erosão da noção de justiça. Quando todo crime político é passível de perdão, a democracia se torna um jogo sem regras firmes, em que o atentado contra a ordem não é risco, mas aposta calculada.

A história nos ensina que perdão sem justiça é apenas adiamento da verdade. Do século XX ao XXI, o Brasil ainda não respondeu à pergunta essencial: como construir uma democracia sólida se, a cada ruptura, corremos para esquecer em vez de aprender?

 

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