PENSAMENTO PLURAL A lenta morte da Costa Brasileira, por Palmarí de Lucena
A erosão da costa brasileira simboliza a traição histórica do País contra suas próprias raízes. “Enquanto florestas recebem atenção, o bioma marinho é negligenciado, deixando praias e comunidades costeiras à mercê da especulação imobiliária. Sem políticas robustas, o avanço do mar ameaça não só a terra, mas a própria essência cultural do Brasil”. O alerta é do escritor Palmarí de Lucena, ora em Paris, em sua crônica desta semana. Confira íntegra…
A Baía da Traição, cujo nome ecoa resistência indígena, hoje se torna emblema de uma traição mais ampla: a do Brasil contra sua zona costeira e povos originários. O avanço implacável da erosão é um testemunho da negligência histórica com nossos mares, praias e aqueles que vivem em comunhão com o oceano. Enquanto se discutem políticas para proteger florestas e biomas terrestres, o mar é deixado à própria sorte — um mar que, ironicamente, é o berço da nossa civilização.
Cerca de 54,8% da população brasileira, ou 111,2 milhões de pessoas, vivem a até 150 quilômetros do litoral. Essa faixa, que deveria pulsar vida e prosperidade, é palco de uma devastação silenciosa. Dados do IBGE indicam que a erosão já consome 60% do litoral, reflexo da combinação perversa entre aquecimento global, ocupação predatória e falta de políticas públicas robustas. Como bem pontua o geógrafo Dieter Mueher, do Espírito Santo, a falta de fiscalização e o avanço desordenado de construções são apenas a ponta do iceberg.
A Baía da Traição, que outrora abrigava os bravos Potiguaras, hoje luta contra uma força tão implacável quanto os invasores de séculos passados: a especulação imobiliária. O “balanço sedimentar” que define o destino das praias se tornou um termo técnico para descrever a realidade de comunidades que veem suas casas e modos de vida tragados pelo mar. Dunas e falésias, antes barreiras naturais, são substituídas por hotéis, e a terra cede — lentamente, mas sem pausa.
Não se pode ignorar o papel do Estado. A construção da BR-101, nos anos 70, rasgou o litoral, atropelando manguezais e restingas, comprometendo ecossistemas que levaram milênios para se formar. Os rios, que antes traziam sedimentos, hoje chegam poluídos e escassos em sua foz. O São Francisco é um retrato melancólico dessa degradação: um gigante cada vez mais débil, sem forças para nutrir a costa.
Se o Nordeste é a região que mais sofre, os números falam por si: Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí lideram a triste estatística de perda de litoral. Contudo, a Paraíba desponta como um caso quase milagroso, com apenas 5% de seu litoral afetado. Sua Constituição impede a ocupação à beira-mar, protegendo o que resta de suas dunas e mangues.
Mas a erosão não é só uma questão de perda de território. Representa a desconexão entre homem e mar, entre políticas públicas e realidades vividas por comunidades indígenas, quilombolas e pescadores que tiram seu sustento das águas. Ao negligenciar o bioma marinho, o Brasil abandona um ecossistema e um modo de vida essencial à sua história.
O que Baía da Traição e outras regiões costeiras clamam é por políticas que vejam além do lucro imediato. É hora de tratar o oceano e suas comunidades com o mesmo zelo que dedicamos às florestas. Sem uma ação concreta, veremos o mar avançando não apenas sobre a terra, mas também sobre o futuro de milhões de brasileiros. Se o mar levar tudo, o que restará? Não apenas dunas e falésias, mas também o próprio espírito de um país que esqueceu suas origens.
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