“A Longa Noite da Desinformação” denuncia o colapso ético provocado pela mentira travestida de verdade. Num país exausto moralmente, a ignorância virou virtude e a dúvida, traição. O texto do escritor Palmarí de Lucena defende o pensamento crítico como antídoto contra o fanatismo e a manipulação, lembrando que a desinformação destrói não apenas fatos, mas a confiança — esse elo invisível que sustenta a convivência humana e a própria ideia de civilização. Confira íntegra…
Há dias em que o espírito do país parece exausto — não apenas pelas crises econômicas ou políticas, mas pelo cansaço moral de conviver com a mentira travestida de verdade. Vivemos um tempo em que a informação, antes um direito, se tornou uma arma; e a palavra, antes ponte de entendimento, virou trincheira. O Brasil parece ter se esquecido de que pensar é um dever, não um luxo, e que o diálogo é a alma da convivência, não o palco da hostilidade.
Em cada esquina digital, há quem se erga como profeta da própria convicção. São médicos, advogados, professores, políticos, empresários — pessoas instruídas, mas nem sempre educadas — que dedicam parte de seus dias a espalhar versões, rumores e meias-verdades. Repetem o que ouviram sem verificar, acreditam no que desejam, não no que é. E assim, entre o descuido e o fanatismo, alimentam um ciclo de engano que corrói silenciosamente a confiança social.
Talvez o mais grave seja a ausência de curiosidade intelectual — esse músculo da consciência que nos obriga a duvidar antes de acreditar. O curioso não se contenta com o que lhe dizem; o crédulo, sim. E o crédulo de hoje, armado de um celular, é o novo emissário da ignorância coletiva. Falta-lhe o hábito da pergunta, o respeito pelo dado, o mínimo senso de responsabilidade que deveria preceder o ato de compartilhar.
Reproduz sem pensar, multiplica sem medir e chama isso de opinião.
Essa preguiça mental — esse desinteresse em distinguir o real do inventado — é o terreno fértil onde germina o autoritarismo de todos os matizes. A mentira, repetida com fé, adquire a força de uma crença; e quando a crença substitui o raciocínio, a civilização se desequilibra. Não há sociedade livre onde a ignorância é exibida como virtude e a dúvida é tratada como traição.
Abraham Lincoln, em um tempo igualmente confuso, advertiu: “É possível enganar algumas pessoas por todo o tempo, e todas as pessoas por algum tempo, mas não é possível enganar todas as pessoas o tempo todo.” A sabedoria dessa frase não está apenas na constatação de que a mentira tem prazo de validade, mas no lembrete de que o engano coletivo é, antes de tudo, um fracasso moral. Enganar os outros é grave; deixar-se enganar por preguiça é uma forma de abdicar da própria dignidade. A verdade exige esforço, paciência, escuta. Mentir, ao contrário, basta um clique.
O dano não é apenas informativo; é espiritual. Quando a mentira se torna rotina, a confiança morre. E sem confiança, a sociedade se desfaz em fragmentos — famílias divididas, amizades desfeitas, comunidades transformadas em campos de batalha moral.
A desinformação não destrói apenas fatos; destrói o elo invisível que sustenta a convivência humana: a fé na palavra do outro.
Mais cruel ainda é quando pessoas idosas, isoladas e com contato limitado com o que se passa no mundo, são usadas para transmitir mentiras e notícias falsas. Negam, sem perceber, os princípios que as mantiveram cidadãs íntegras e exemplares para seus filhos, netos e para a sociedade como um todo. Tornam-se vítimas e instrumentos de um sistema que se aproveita de sua boa-fé, explorando a fragilidade emocional e a solidão que deveriam ser acolhidas, não manipuladas. É uma violência silenciosa — a mais triste de todas — porque fere o que há de mais digno na velhice: a memória do exemplo e a herança moral.
Há quem encontre prazer em espalhar a dúvida, como se fosse um ato de coragem. Mas coragem não é desafiar a verdade — é enfrentá-la. O verdadeiro espírito livre não se contenta em repetir; investiga. Não teme mudar de opinião; teme permanecer errado. O pensamento crítico não é uma ameaça à fé, à ideologia ou ao amor à pátria — é o que os preserva da mentira.
O país precisa reaprender a desconfiar com lucidez, e não com raiva. Não se trata de ideologia, mas de ética. A busca pela verdade não é de esquerda nem de direita — é um gesto de civilização. Enquanto uns tratam a mentira como arma e outros a aceitam como consolo, o país afunda num pântano de ressentimentos e certezas ocas.
A desinformação é o novo analfabetismo moral: não se mede pela falta de leitura, mas pela recusa em compreender.
Este desabafo, portanto, não é político. É humano. É um protesto calado, mas profundo, contra a indiferença que corrói o espírito coletivo.
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