O Blog pede permissão ao dileto amigo Gonzaga Rodrigues para reproduzir sua crônica “A onda invisível”, publicada pelo jornal A União. O texto, pela beleza de sua poesia, só reforça a mestria do autor, que se inspira nos tempos sombrios pelo qual passamos e traça um paralelo com o apocalipse dos pássaros de Alfred Hitchcock, para refletir sobre as incertezas do amanhã. Confira à íntegra…
Perdi o embalo. E me vejo, na calma da idade, em um mundo a se fechar em densa e pesada nuvem de corvos, pardais, como os pássaros infernais do apocalipse de Hitchcock. E o que é pior, com o mais limpo e fulgurante céu de um fim de verão. Céu pleno, no puro azul da Criação, com leves cimos brancos que a chuva lavara para afogar os leitos secos dos nossos rios. Desta vez o Paraíba foi buscar água na cheia de 24, dilatando margens, derrubando barreiras e pedindo calma a tudo que é afluente, atemorizando os ribeirinhos do Boqueirão. No milharal do Ceará as telas aparecem com mais dentes robustos no sorriso do roceiro do que os grãos de ouro na espiga que descasca para as lentes.
Onde está o inimigo, Senhor Deus?! No filme de Hitchcock, por mais que o inimigo varasse ferozmente as salas mais seguras, o pavor assombrava os olhos. O corvo, que para nos lacerar não podia esperar que apodrecêssemos, batia nas vidraças, corvejava. Os pardais faziam nos baixar, correr, amparar as cabeças. E agora, que enxame nos leva a fechar a porta à filha ou ao filho que não mora conosco? Barreto Neto não está aqui para nos dizer, ele que viu como ninguém a montagem de um fim de mundo num lugarejo isolado da Califórnia e numa contingência em que sobravam muitos outros mundos para onde migrar. Neste de agora não há ilhas nem Pasárgadas. Indescritível para quem não é Augusto dos Anjos.
Nova Iorque, Tóquio, São Paulo nunca se sentiram tão incapazes, com estrutura e engenharia de máquinas e robôs que aprontam milhares de carros por hora, 50 milhões por ano, mas incapazes de ter pensado que o chefe poderia morrer por falta de um respirador.
Mas isso é o menos. Governo, indústria, comércio e todas as demais forças históricas do sistema produtivo não conseguem sequer ser generosos: os 600 reais de emergência são dados de uma forma que é mais risco de morte do que ato de remissão. Quantos mais milhões saírem desprotegidos – falam em 90 milhões – para comprovar a sua necessidade, a sua fome, mais covas se abrem nas valas com que o ultracientífico século 21 reedita, em proporções modernas, isto é, mais desumanas, a necrópole em terra rasa do cólera de 160 anos atrás.
Os cemitérios que a 2ª Guerra Mundial deixou nos campos da Europa, milhares e milhares de cruzes brancas geometricamente alinhadas, reeditam-se, agora, aos montões em centenas de países. Três meses seguidos de enterros sem féretros, sem cruz benta, só e tão somente pelas garras enormes da escavadeira. E de tanta morte, tanto noticiário e tanta advertência, só nos resta esperar fechado a sete chaves, o céu limpo, o sol brilhante e o mais incerto dos amanhãs.
– Vovô? Ele voa no ar?
– Não sei filhote, é melhor evitar.