Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena denuncia como o exercício da política no Brasil transformou-se, nos últimos tempos, num cenário de espetáculo. “Nesse ambiente, os arautos do bolsonarismo aperfeiçoaram a arte de criar uma “realidade alternativa”, na qual a verdade é descartável e os fatos cedem lugar à ficção conveniente… A democracia brasileira não se fragiliza apenas pelos ataques diretos, mas pela corrosão lenta operada por essa realidade paralela”, afirma. Confira íntegra...
O Brasil viveu nos últimos anos a consolidação de uma política convertida em espetáculo. Não se trata mais de governar, planejar ou entregar resultados concretos, mas de encenar narrativas, fabricar inimigos e manter uma plateia mobilizada pela emoção. Nesse ambiente, os arautos do bolsonarismo aperfeiçoaram a arte de criar uma “realidade alternativa”, na qual a verdade é descartável e os fatos cedem lugar à ficção conveniente.
A estratégia é simples: desacreditar as instituições democráticas, corroer a confiança pública e alimentar a ideia de que tudo o que não se submete ao mito é manipulação. Quando o Supremo Tribunal Federal cumpre seu papel constitucional, é acusado de conspirar; quando a imprensa expõe contradições, é tachada de inimiga; quando políticas públicas tentam avançar, logo são ridicularizadas como farsas ou sabotadas por desinformação.
Essa realidade paralela não é apenas discurso. Ela cumpre uma função tática: minar os programas de governo que, mesmo diante de limitações orçamentárias e do bloqueio imposto por manobras parlamentares, buscam enfrentar desigualdades históricas. O bolsonarismo precisa negar avanços em saúde, educação ou inclusão social para sustentar sua narrativa de caos permanente. E conta, para isso, com uma máquina de propaganda alimentada por influenciadores digitais, parlamentares de ocasião e comunicadores militantes, que transformam boatos em dogmas e mentiras em verdades úteis.
Enquanto isso, o Congresso é instrumentalizado por uma lógica perversa de emendas parlamentares que desviam recursos públicos para alimentar feudos eleitorais e dinastias políticas locais. A barganha de verbas, travestida de prerrogativa democrática, transforma-se em moeda de troca para bloquear iniciativas do Executivo e garantir que o espetáculo continue. Ao povo, restam as sobras: slogans ruidosos, crises fabricadas e a sensação de que nada muda.
A democracia brasileira não se fragiliza apenas pelos ataques diretos, mas pela corrosão lenta operada por essa realidade paralela. Quando uma mentira repetida mil vezes passa a ser mais convincente do que qualquer dado, a racionalidade política cede lugar ao fanatismo. Quando se alimenta a descrença nas instituições, abre-se espaço para que aventureiros políticos se apresentem como salvadores, mesmo que não tenham projeto além da autopreservação.
O preço desse teatro é alto: oportunidades desperdiçadas, políticas públicas paralisadas e uma sociedade dividida entre torcidas cegas. O Brasil, em vez de avançar em consensos mínimos para superar desigualdades, fica refém de uma encenação interminável. O país precisa decidir se continuará prisioneiro de um espetáculo que falseia a realidade ou se exigirá, finalmente, uma política fundada em propostas, diálogo e resultados. A escolha, como sempre, estará no discernimento do eleitor — mas só se ele for capaz de distinguir entre a cena montada e a vida real que o afeta todos os dias.
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