
O escritor Palmarí de Lucena critica candidaturas que surgem não de projetos, mas de impedimentos, transformando a política em compensação e herança simbólica. Aponta que estas práticas de sucessão por ausência empobrecem o debate, substituem programas por sobrenomes e enfraquecem a democracia. Alerta para o risco da privatização do poder quando desistências viram barganha e defendem que a Presidência exige método, equipe e responsabilidade institucional. O texto conclui que governos não se herdam: escolhem-se no voto e na pluralidade. Confira íntegra...
A normalização de candidaturas que surgem como resposta a impedimentos jurídicos — e não da apresentação de projetos claros ao eleitor — não é detalhe lateral da conjuntura. É indício de uma deformação mais profunda na cultura política nacional. Quando um herdeiro aparece como solução automática para a ausência do titular, a política deixa de operar como escolha e passa a funcionar como compensação.
Em vez de disputa entre ideias e caminhos, instala-se uma transição discreta: não se projeta o futuro, administra-se o passado. A eleição perde densidade programática e ganha feição de inventário simbólico. O mandato passa a soar como espólio, não como delegação pública.
Esse tipo de sucessão não é sinal de estabilidade institucional. É, ao contrário, sintoma de dependência política. Movimentos que se organizam inteiramente ao redor de uma figura tendem a enfraquecer quando essa figura se ausenta — por decisão própria, por interdições judiciais ou por invalidações institucionais diversas. O herdeiro, nesse modelo, não emerge como liderança autônoma, mas como mecanismo de contenção. Não inaugura uma agenda; preserva uma biografia.
A democracia não foi concebida para funcionar como empresa familiar. O poder não é transmissível por sangue, afinidade ou lealdade emocional. Mandato não se herda: conquista-se pelo voto em propostas verificáveis. O risco da política dinástica não está no sobrenome em si, mas na substituição do debate público pela lógica patrimonial.
Também é equivocado supor que experiência legislativa seja, por si, certificado de preparo para o comando do Executivo. Presidências exigem mais do que trânsito parlamentar. Exigem capacidade de coordenação administrativa, leitura econômica integrada, articulação federativa e relação madura com as instituições de controle. O país precisa de líderes, não apenas de representantes.
Nesse contexto, discursos genéricos sobre previsibilidade econômica, combate ao crime e racionalização do Estado fazem parte de um repertório antigo. São promessas presentes em praticamente todas as campanhas nacionais desde a redemocratização. O que distingue retórica de governo é execução. E execução requer método, equipe, coalizão política e desenho institucional claro. Sem isso, planos viram slogans — e slogans administram mal.
A degradação se aprofunda quando surgem sinais de que a candidatura não é apenas instrumento eleitoral, mas também peça de negociação privada. É politicamente tóxico tratar uma desistência como moeda de proteção pessoal; quando a candidatura vira instrumento de blindagem privada, a democracia vira refém. A política deixa de ser projeto coletivo e se aproxima de leilão doméstico.
A questão, aqui, é institucional — não pessoal. Se uma eventual retirada passa a depender de garantias, acomodações familiares ou salvaguardas privadas, o país cruza uma linha perigosa: a da privatização do poder. Governos existem para administrar conflitos públicos, não para resolver impasses domésticos. Quando a política vira seguro pessoal, deixa de ser política e se converte em proteção patrimonial.
O eleitor não pode ser tratado como espectador de acordos silenciosos. Democracia não opera por transações subterrâneas. Candidaturas não são ativos negociáveis. E a Presidência da República não é mecanismo de compensação.
O risco maior da política herdada não é ideológico. É estrutural. Onde o sobrenome substitui o programa, empobrece o debate. Onde a linhagem ocupa o lugar da escolha, a democracia se estreita. A política torna-se registro afetivo quando deveria ser construção racional.
Num país historicamente tentado por personalismos, esse desvio não é novidade. Mas democracias amadurecem quando recusam a estética da sucessão familiar e reafirmam o valor do mérito público. A República só permanece viva quando alterna lideranças — e não quando as recicla dentro da mesma moldura.
Candidaturas que existem para contornar ausências e não para oferecer caminhos empobrecem a democracia. O eleitor deixa de escolher destinos e passa a administrar vazios.
E vazio não governa.
A Presidência não é herança.
É responsabilidade.
O poder não se transmite por sobrenome.
O poder se legitima no voto — e na pluralidade.
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