
Em sua crônica, o escritor Palmarí de Lucena lembra como o Natal cristão nasce do deslocamento, não do conforto. “No Evangelho de Mateus, a Sagrada Família foge da violência e atravessa fronteiras para sobreviver, revelando que a salvação começa como gesto de proteção”, diz. Essa narrativa confronta o presente, em que refugiados são tratados como ameaça, não como vidas a acolher. Celebrar o Natal é escolher o lado dos vulneráveis, afirmar a dignidade humana acima de muros e lembrar que nenhuma fé ou sociedade é autêntica se fecha a porta a quem pede abrigo. Confira íntegra...
Celebrar o Natal é mais do que repetir um calendário de afetos. É recordar que a história fundadora do cristianismo não nasce sob o abrigo do poder, mas sob a fragilidade de uma família em fuga, ameaçada pela violência e salva pela travessia. No Evangelho de Mateus, o nascimento de Jesus é narrado sem ornamentos: sonhos que alertam, uma estrela que orienta, um governante que persegue e uma família que atravessa fronteiras para sobreviver.
Não há sentimentalismo nessa cena inaugural. José acorda no meio da noite; Maria carrega o filho recém-nascido; o caminho aponta para o Egito — terra estrangeira, memória ambígua de refúgio e exílio. Antes de qualquer palavra pública, o Messias conhece o medo, o deslocamento e a dependência do acolhimento alheio. O presépio, nesse sentido, não é adereço devocional: é um manifesto silencioso sobre onde a esperança escolhe nascer.
Mateus faz questão de ligar essa travessia às antigas promessas. Ao evocar as profecias, afirma que a identidade messiânica não se constrói no palácio, mas no caminho; não se impõe pela força, mas se preserva pela coragem de partir. O poder reage com violência — o massacre dos inocentes expõe a face nua da paranoia política —, enquanto a vida responde com deslocamento e cuidado. A salvação, ali, não é conquista: é proteção.
Essa chave de leitura ilumina, de forma incômoda, o presente. Nunca houve tantos deslocados forçados no mundo, e raramente eles foram tratados com tamanha desconfiança. Governos que deveriam proteger erguem muros, criminalizam travessias e naturalizam a exclusão. Sociedades que celebram a paz do Natal toleram — quando não endossam — políticas que transformam o pedido de abrigo em ameaça e o estrangeiro em problema.
Contra essa inversão moral, a mensagem natalina permanece atual e desconfortável. Como nos lembrou Papa Francisco, acolher o refugiado não é um gesto retórico de compaixão, mas um critério ético que mede a autenticidade da fé e da vida pública. A Sagrada Família dificilmente se enquadraria nos filtros migratórios contemporâneos. Não teria vistos, garantias ou narrativas aceitáveis. Ainda assim, é nela que o cristianismo reconhece sua origem.
Celebrar o Natal, portanto, é reconhecer que Deus entra na história pelo lado dos vulneráveis. É afirmar que a dignidade humana precede fronteiras, documentos e discursos. A estrela que guia estrangeiros não legitima privilégios; desestabiliza certezas e convoca à hospitalidade. O Natal cristão não separa fé e mundo: confronta-os no terreno da realidade.
Num tempo em que “refugiado” se reduz a estatística ou ruído político, o Natal devolve nomes, rostos e caminhos. A Sagrada Família não pede aplausos; pede passagem. Não reivindica exceções; pede abrigo. E ensina que a paz celebrada nas mesas nasce do reconhecimento do outro — sobretudo quando o outro chega cansado, com medo, pedindo apenas para ficar.
Celebrar o Natal é, enfim, escolher esse lado da história. É acender luzes não para ocultar sombras, mas para iluminar caminhos. É afirmar, com sobriedade e esperança, que a vida merece proteção — sempre — e que nenhuma fé, nenhum governo e nenhuma sociedade se sustentam se não souberem abrir a porta.
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