PENSAMENTO PLURAL A República dos Penduricalhos: privilégios no Judiciário e Congresso, por Palmarí de Lucena

O escritor Palmarí de Lucena observa, em seu comentário, como, enquanto o povo rala com o básico, o topo da República habita um universo paralelo: salários acima do teto, mordomias legais, silêncio cúmplice. “O Judiciário e o Legislativo, protegidos por normas internas, confundem excelência com privilégio, e a democracia, corroída por dentro, não desabou de repente — ela se desfaz no conforto opaco dos que deveriam dar o exemplo”, pontua. Confira íntegra…

Num país onde o salário mínimo mal cobre o básico, o teto constitucional virou ficção. O recente parecer da Corregedoria do CNJ, ao limitar supostamente os penduricalhos dos magistrados a R$ 46,3 mil, teve o efeito contrário: criou uma escada paralela. Com gratificações, verbas indenizatórias e auxílios diversos, juízes passam a ganhar mais de R$ 90 mil mensais — livres de imposto e de constrangimento. Legal, sim. Mas legítimo?

Do outro lado da Praça dos Três Poderes, o Congresso Nacional exibe sua própria coleção de regalias, embutidas em cotas, auxílios, reembolsos e aposentadorias especiais. Deputados e senadores partem de um salário-base de R$ 41 mil, mas navegam num mar de benefícios que inclui passagens aéreas para familiares, hotéis cinco estrelas, refeições luxuosas, carros de aplicativo premium e serviços de assessoria com verba pública. É um universo paralelo, onde a liturgia do cargo se confunde com o conforto de uma corte.

Tudo é autorizado. Tudo é previsto em normas. Mas a legalidade tem limites quando confrontada com a moralidade pública. O Judiciário e o Legislativo, em vez de espelhos da lei, tornaram-se vitrines do privilégio. E não é por falta de crítica — é por falta de reação. As instituições resistem a qualquer tentativa de moralização com a desculpa de que isso afastaria os “melhores quadros”. Mas que métrica de excelência é essa, que exige mordomias em vez de mérito?

Enquanto isso, professores compram giz do próprio bolso. Enfermeiros dividem um jaleco entre turnos. Policiais percorrem comunidades com viaturas sem combustível. O Brasil real, invisível aos beneficiários de um Estado sob medida, assiste de longe à blindagem recíproca dos Poderes. Nada de ilegal, dizem eles. Mas tudo tão desigual, pensa o cidadão.

Não se trata de atacar o funcionalismo público nem de reduzir o debate à simplificação populista. Trata-se de encarar a questão central: há um fosso entre os servidores da linha de frente — que sustentam o Estado com trabalho anônimo — e os que decidem quanto o Estado pode lhes pagar. Um desequilíbrio que corrói a autoridade das instituições, esvazia o discurso de responsabilidade fiscal e sabota a confiança na democracia.

Pior que o privilégio é o silêncio em torno dele. A complacência dos que julgam, legislam e fiscalizam apenas para dentro, protegendo um sistema que garante conforto, mas nega exemplo. É essa omissão — e não o excesso de crítica — que afasta a população da política e abre espaço para o cinismo.

Não é o excesso de crítica que ameaça as instituições — é a ausência de autocrítica. Quando os Poderes da República se tornam reféns de seus próprios privilégios, quando juízes legislam em benefício próprio e parlamentares se protegem sob o manto da legalidade interessada, o pacto social se rompe não por revolta, mas por descrença.

A democracia, que deveria ser um exercício constante de exemplo e equidade, transforma-se em vitrine de exceções sustentadas por uma lógica corporativa. E nesse teatro institucional, onde a liturgia do cargo serve de escudo contra a responsabilidade, o que se fragiliza não é apenas o teto, mas o próprio alicerce da República. O país que tolera privilégios silenciosos em nome da estabilidade está, na verdade, empurrando a instabilidade para o porão — e ignorando que, cedo ou tarde, a conta desce para o térreo.

 

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