
O escritor Palmarí de Lucena aponta, em seu comentário, como “a intervenção de Donald Trump para impedir a prisão de Jair Bolsonaro — com tarifas, sanções e pressão direta sobre o governo brasileiro — fracassou”. O Judiciário manteve a condenação e Bolsonaro acabou preso após violar sua tornozeleira. Posteriormente, Trump aproximou-se de Lula e suspendeu as tarifas mais duras, abandonando o antigo aliado. “O episódio revelou os limites da influência americana e marcou uma rara afirmação de soberania brasileira, enquanto persistem debates internos sobre os rumos do Judiciário e da democracia”, pontua. Confira íntegra...
Há momentos na história política em que a realidade abandona o realismo monótono da burocracia e se aproxima do ritmo moral de um romance. A prisão de Jair Bolsonaro, seguida da reação fria — quase indiferente — de Donald Trump, é um desses instantes que pedem interpretação mais profunda do que o noticiário apressado normalmente permite. Jack Nicas, no New York Times, percebeu isso com precisão cirúrgica ao narrar o episódio em “Brazil Defied Trump and Won”. Mas por trás da manchete há uma história maior: a de um país que, por alguns meses, rejeitou um script escrito alhures e escolheu o papel mais arriscado — o da autonomia.
O cenário era improvável. Em julho, Trump enviara a Lula uma carta carregada de tensão diplomática. Exigia que o governo brasileiro recuasse nas acusações de tentativa de golpe contra Bolsonaro. Não era um pedido; era um ultimato vestido com o verniz oficial. Logo depois, vieram as tarifas de 50% sobre café, carne e outros produtos brasileiros, seguidas de algo ainda mais extraordinário: sanções diretas contra o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Era o tipo de gesto que, décadas atrás, teria abalado a política regional. Desta vez, não abalou.
Porque o Brasil — em um raro momento de afirmação institucional — seguiu adiante. O processo judicial não foi interrompido. A pena foi confirmada. E Bolsonaro acabou preso, após tentar queimar a própria tornozeleira eletrônica e, depois, atribuir o ato a “alucinações” provocadas por medicamentos.
Foi nesse instante que a narrativa se torceu. A ofensiva americana não apenas fracassou: muitos analistas sugerem, como destaca o Times, que ela pode ter provocado um efeito oposto ao desejado, incentivando o Supremo a agir com ainda maior rigor para garantir a mensagem de independência do Judiciário. A ironia é quase literária: ao tentar proteger seu aliado, Trump talvez tenha acelerado sua queda.
A história ganha outra camada quando se observa o comportamento do presidente americano diante da derrota. A mesma energia que impulsionara as tarifas e a carta agressiva evaporou-se em poucas semanas. Trump passou a cortejar Lula — “great chemistry”, disse na ONU —, sentou-se com ele e revogou as sanções comerciais mais pesadas, deixando apenas o gesto simbólico de manter Moraes na lista negra. Era como se o tabuleiro tivesse sido reorganizado e o aliado abandonado como peça excedente.
Bolsonaro, o fiel escudeiro do trumpismo tropical, assistiu tudo de dentro de uma cela. Sozinho.
Uma solidão política que raras vezes é explicitada, mas que atravessa cada gesto subsequente de sua família, sobretudo de seu filho Eduardo, também cercado agora por acusações formais por tentar influenciar a Casa Branca em benefício do pai.
O episódio ilumina, então, o verdadeiro tema central: os limites do poder americano no século XXI. A velha expectativa de que Washington poderia pressionar, ameaçar e reordenar decisões internas de governos latino-americanos encontrou, no caso brasileiro, uma resistência inesperada. Não por arrogância, mas por um cálculo institucional: ceder teria custado mais caro do que enfrentar o gigante.
Ao mesmo tempo, ficou evidente a volatilidade da diplomacia de Trump. Aliados são úteis enquanto servem a objetivos eleitorais; tornam-se descartáveis quando se tornam um peso doméstico. Bolsonaro, outrora “o Trump dos Trópicos”, tornou-se exemplo dessa descartabilidade.
E, no fim, a cena mais reveladora não está nas tarifas, nos encontros em Kuala Lumpur ou nos bastidores do Itamaraty. Está na resposta de Lula, lacônica e firme, ao ser perguntado sobre a reação americana à prisão de Bolsonaro: “Trump precisa entender que somos um país soberano.”
Essa frase, simples e antiga na sua construção, revela o que realmente estava em disputa: a capacidade de um Estado afirmar-se diante de pressões externas sem sucumbir ao peso histórico do hemisfério. É verdade que o Brasil continua debatendo, internamente, os limites e riscos das decisões de Moraes — debates legítimos sobre a proteção das instituições e os perigos de excessos judiciais. Nada disso está resolvido. Mas, no plano internacional, um ponto se cristalizou: o país não recuou.
E, por um breve momento, no espelho turvo da política latino-americana, Brasília não dobrou a espinha.
Pelo contrário — ergueu-a.
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