PENSAMENTO PLURAL A vergonha coletiva não se apaga com tesouras, por Palmarí de Lucena

O escritor Palmarí de Lucena lembra como, em meio à libertação de Paris em 1944, mulheres foram humilhadas publicamente por suposta colaboração com o inimigo, enquanto os verdadeiros cúmplices seguem impunes. “Hoje, novos traidores agem de terno e gravata, conspirando contra o país em nome de interesses próprios. A história se repete, e a vergonha coletiva persiste — agora sem tesouras, mas com silêncio”, acrescenta. Confira íntegra...

Em agosto de 1944, quando Paris se libertava dos coturnos alemães, as ruas se encheram de gente. Mas a multidão não saiu apenas para celebrar a liberdade — saiu também para exigir vingança. E, como tantas vezes na história, a fúria popular escolheu o alvo mais frágil: mulheres.

Nenhum banqueiro foi julgado por financiar a ocupação. Nenhum industrial foi indiciado por enriquecer com a guerra. Juízes, prefeitos e delatores seguiram suas rotinas. Mas as mulheres que, por amor, ingenuidade, sobrevivência ou aparência, se envolveram com soldados alemães, essas foram levadas à praça pública.

Rasparam-lhes as cabeças. Pintaram suásticas na pele delas. Expuseram-nas como troféus — não da justiça, mas do ressentimento. Cada fio de cabelo caído parecia carregar o peso de uma culpa coletiva não assumida. Era menos punição e mais purgação simbólica: um teatro montado para ocultar a covardia dos que, durante a ocupação, calaram ou consentiram.

Porque a justiça, é bom lembrar, exige coragem. Já o espetáculo, apenas plateia.

Décadas depois, esse impulso de teatralidade moral ressurge com novas máscaras. Os protagonistas já não usam fardas, mas paletós. Já não ocupam praças, mas redes sociais, parlamentos e palcos internacionais. Não arrastam mulheres — arrastam o nome do próprio país.

São homens. Homens de verbo suave ou inflamado. Homens com sobrenomes conhecidos. Homens que viajam com passaporte diplomático no bolso para denunciar a nação que os formou. Que assinam documentos, sugerem sanções, tramam embargos — não em nome de princípios universais, mas por conveniência partidária, cálculo eleitoral ou mero ressentimento.

Diferentemente daquelas mulheres, não enfrentam praças lotadas. Não são marcados com tinta. Não têm seus rostos cuspidos. Não conhecem o peso de carregar um filho no colo enquanto ouvem a palavra “traidora”.

Seguem impunes. Sem vergonha visível. Amparados por uma retórica que confunde oposição com sabotagem, dissenso com delação. Suas ações visam governos, mas ferem a economia, corroem a confiança internacional, enfraquecem o país.

Enquanto isso, seguimos recorrendo aos alvos previsíveis. Seguimos confundindo justiça com espetáculo, patriotismo com plateia, e denúncia com traição. Seguimos punindo os frágeis para absolver os fortes. Seguimos lavando a alma com a dor alheia, sem jamais encarar o espelho.

A pátria, essa entidade tantas vezes invocada, não pode ser madrasta que protege os articulados e castiga os vulneráveis. Nem palco para vaidades travestidas de civismo. O Brasil precisa de um outro teatro: o da responsabilidade, da memória e da verdade.

Porque os cabelos raspados crescem.
Mas o silêncio dos que aplaudiram — ou tramaram — esse espetáculo, esse, não some com o tempo.

 

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