PENSAMENTO PLURAL A vitimização como escudo político, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena avalia como “a vitimização política tornou-se arma de líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que se dizem perseguidos para ocultar condutas e enfraquecer a Justiça”. Cercados por parlamentares do baixo clero e falsos intelectuais, transformam julgamentos em espetáculos passionais, onde a lei é tratada como inimiga. E ainda: “Esse coro corrosivo mina a confiança nas instituições, alimenta a impunidade e ameaça a democracia, que só sobrevive com responsabilidade e igualdade perante a lei.” Confira íntegra…

A política contemporânea assiste a uma reedição de um artifício antigo: a transformação do acusado em vítima. Líderes e políticos que respondem a processos por crimes contra o Estado democrático de direito, corrupção ou delitos comuns recorrem cada vez mais a uma narrativa de perseguição, apresentando-se como alvos de uma conspiração judicial ou midiática. Essa inversão, que confunde defesa legítima com manipulação discursiva, mina a confiança pública nas instituições e perpetua a impunidade.

Não é um fenômeno isolado. Donald Trump, nos Estados Unidos, elevou a prática a método político. Enquanto enfrenta acusações criminais e processos judiciais, repete incansavelmente que é vítima de um complô e que está sendo punido por defender o “povo americano”. Ao mesmo tempo, conduz uma política de retaliação: ameaça governadores democratas, financia candidatos alinhados a seus interesses e usa o poder do Estado para perseguir adversários, reais ou imaginários, Sua retórica não apenas disfarça suas condutas, mas também alimenta o ressentimento social, oferecendo à base radical um inimigo conveniente — o sistema de justiça.

O Brasil conheceu a mesma lógica. Jair Bolsonaro e seus seguidores, ao serem chamados a responder por atos antidemocráticos, alegam que não passam de perseguidos políticos. Usam essa narrativa para evitar a discussão sobre a gravidade de suas ações: o estímulo à violência institucional, o desprezo pelas regras do jogo democrático e a tentativa de enfraquecer o Judiciário. O que deveria ser um processo de responsabilização é desviado para uma disputa emocional em que a lei aparece como vilã.

Cada dia, cresce também o coro dos defensores da vitimização. Falsos intelectuais, políticos obscuros e parlamentares do baixo clero assumem o papel de bois de piranha, desviando o foco da responsabilidade de seus líderes. Servem como escudeiros de uma prática política perversa, em que a defesa não se dá no campo jurídico, mas na arena do espetáculo, onde se substitui o argumento pela gritaria e a prova pela emoção manipulada.

Entre esses defensores, encontram-se políticos fracassados que buscam desesperadamente uma nova legenda para se reinventar, de olho em apoio financeiro para sustentar suas fantasias eleitorais. O pedágio a ser pago é alto: exige discursos inflamados em defesa dos malefícios de réus já julgados e ataques virulentos contra qualquer voz que, de modo racional e coeso, tente defender a Justiça sem recorrer a bordões ou a apitos de cão.

Governos autoritários, por sua vez, também recorrem à mesma tática: apresentam-se como guardiões da pátria injustamente atacados por elites ou inimigos externos. Na prática, usam a vitimização para blindar abusos, neutralizar críticas e legitimar medidas de exceção. Assim, o discurso da perseguição se torna um escudo contra a lei e uma arma contra a democracia.

O resultado é corrosivo. Ao minar a legitimidade do Judiciário, os acusados transformam seus julgamentos em plebiscitos passionais. A sociedade, em vez de se debruçar sobre provas e fatos, é empurrada para trincheiras ideológicas, onde cada processo judicial vira espetáculo e cada condenação, um ato de censura. Esse é o terreno fértil da impunidade, em que culpados se eternizam como mártires e a lei se dobra ao jogo do poder.

Se a democracia quer sobreviver, precisa enfrentar essa armadilha. A justiça não pode ceder à chantagem emocional da vitimização política. É preciso reafirmar que tribunais julgam condutas, não ideologias; que ninguém está acima da lei, nem mesmo os que se dizem porta-vozes do povo; e que a liberdade só existe quando acompanhada de responsabilidade.

 

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