PENSAMENTO PLURAL Aposentadoria antecipada e os caminhos tortuosos da burocracia, por Palmarí de Lucena

Em seu novo comentário, o escritor Palmarí de Lucena critica a busca por aposentadoria antecipada no Brasil, onde alguns, orientados por advogados, pressionam médicos por atestados sem base clínica real. Isso, segundo o autor, sobrecarrega o sistema de saúde, prejudica pacientes genuínos e desmoraliza a medicina. Enquanto profissionais e serviços públicos sofrem, surgem lucros com essa “indústria”. “A aposentadoria por invalidez deve ser garantida apenas a quem realmente precisa, preservando o propósito da Previdência Social”, acrescenta. Confira íntegra…

Em muitos cantos do Brasil, aposentadoria por invalidez ou incapacidade passou a ser vista não como um direito assegurado por critérios técnicos e médicos, mas como um prêmio possível de ser conquistado com uma boa dose de astúcia jurídica e um atestado médico conveniente. A chamada “data de entrada do requerimento” — ou DER — tornou-se o novo Santo Graal dos pretendentes a uma vida sem trabalho, ainda que os sinais clínicos não confirmem qualquer limitação real.

A narrativa que se repete em consultórios médicos, públicos e privados, é quase sempre a mesma: pacientes — muitas vezes orientados por advogados especializados em Direito Previdenciário — chegam com discursos treinados, sem exames complementares, mas munidos de uma recomendação assertiva: “preciso de um atestado, doutor”. Não pedem uma consulta, pedem um laudo. Não buscam diagnóstico, mas uma chancela médica para aquilo que já foi previamente decidido — a tentativa de aposentar-se antes do tempo previsto pela lei, com base em patologias frequentemente subjetivas.

Consultórios do SUS e de clínicas particulares são bombardeados diariamente por essa pressão silenciosa, que desgasta o sistema, o profissional e, em última instância, o próprio conceito de justiça social. Em algumas ocasiões, pequenos grupos de “mobilizadores” — quase agentes informais do benefício precoce — organizam visitas coletivas a médicos especialistas, especialmente em unidades de saúde onde a fiscalização é mais tênue. Esses expedicionários do atestado sabem que o sistema é vulnerável e que basta um documento bem redigido para dar início a uma longa jornada que, com sorte e insistência, termina com um “benefício concedido”.

O impacto dessa demanda artificial atinge diretamente a capacidade dos serviços públicos de saúde. Uma parcela significativa do tempo dos especialistas contratados por prefeituras, sobretudo reumatologistas, ortopedistas e psiquiatras, é consumida por atendimentos voltados unicamente à emissão de laudos sob orientação de advogados. Não se trata de consultas terapêuticas, mas de atos burocráticos disfarçados de prática clínica, em que o saber médico é instrumentalizado como peça técnica para sustentar uma narrativa jurídica. E enquanto isso, pacientes genuinamente adoecidos — que não têm advogado, nem conhecem atalhos — ficam à margem, à espera de um retorno que nunca chega.

A consequência dessa prática vai muito além do prejuízo econômico ao INSS. Ela abala a confiança na medicina, desmoraliza o profissional que se nega a assinar um atestado sem base técnica, e empurra para a marginalidade aqueles que realmente precisam da aposentadoria por incapacidade e veem seus pedidos se arrastarem entre perícias sucessivas, recusas padronizadas e suspeitas de má-fé.

Enquanto isso, há quem lucre com essa indústria da aposentadoria antecipada: advogados previdenciários que cobram por cada recurso, clínicas que se especializaram em “emitir laudos” e até atravessadores que oferecem pacotes completos, com “formatação jurídica” e “assessoria médica”.

É claro que há brasileiros e brasileiras honestos, acometidos por doenças graves, que não conseguem trabalhar e dependem desesperadamente da proteção social que o Estado lhes deve. Mas esses, muitas vezes, são os últimos a serem atendidos, sufocados pela fila inflada de pedidos oportunistas.

A aposentadoria por invalidez deve ser uma conquista de quem perdeu, de fato, a capacidade de seguir no batente — não um artifício para burlar o tempo. Transformá-la em solução para o tédio, a insatisfação profissional ou as dores difusas da existência é desvirtuar o pacto coletivo que sustenta a Previdência.

Mais do que combater fraudes, é preciso reconstruir a noção de dever — do Estado, sim, mas também do cidadão.

 

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