PENSAMENTO PLURAL Bolsonaro diante do julgamento: a democracia posta à prova, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena observa como “o julgamento de Jair Bolsonaro condensa a história em um instante dramático: não é apenas um ex-presidente diante da lei, mas a própria democracia brasileira diante do espelho”. E citra também como “Montesquieu lembraria os limites do poder, Rousseau perguntaria pelo pacto social, Tocqueville advertiu contra o fanatismo. O Supremo, ao decidir, julga também o futuro: se a República pertence aos homens passageiros ou às leis que a sustentam”. Confira íntegra…

O julgamento de Jair Bolsonaro é um desses momentos em que a história de um país parece condensar-se em uma única cena. Não se trata apenas do destino de um ex-presidente acusado de conspirar contra a ordem democrática, mas da resposta que uma nação é capaz de dar diante da tentação autoritária. O Supremo Tribunal Federal carrega, nesse instante, um peso que não é apenas jurídico: é filosófico, político e moral.

Montesquieu advertia que todo poder tende a abusar e que somente outro poder, limitado pela lei, poderia contê-lo. O que se vê hoje é a materialização desse princípio. Um presidente que buscou estender sua influência para além dos limites constitucionais agora se encontra diante da instância que, por natureza, lhe impõe barreiras. Não é vingança, mas a aplicação da regra básica da separação dos poderes: quem tenta ultrapassar o limite da lei precisa ser reconduzido a ela pela própria lei.

Rousseau, por sua vez, refletia sobre a vontade geral como expressão da soberania popular. O que significa, então, quando representantes eleitos, sustentados pelo erário, utilizam seus mandatos não para defender o pacto coletivo, mas para buscar no estrangeiro apoio contra as instituições do próprio país? Em qualquer república madura, tal comportamento seria lido como traição. No Brasil, permanece sendo tratado como uma extensão do jogo político. A questão ética é clara: pode alguém reivindicar a legitimidade da representação popular enquanto sabota as bases que a tornam possível?

Tocqueville, observando a América do século XIX, alertava para os riscos da tirania da maioria e da corrosão lenta das instituições pela apatia ou pelo fanatismo. O Brasil de hoje vive algo análogo: uma sociedade dividida, em que a paixão política ameaça substituir a razão pública. O julgamento de Bolsonaro é também um julgamento dessa polarização: será que as instituições são fortes o suficiente para reafirmar que a democracia não é apenas o governo das maiorias, mas o respeito às regras que permitem que a alternância de poder seja legítima e pacífica?

Esse dilema não é exclusivo do Brasil. A cena ecoa julgamentos recentes de líderes que abusaram de seus cargos em outras partes do mundo: Trump nos Estados Unidos, Zuma na África do Sul, Berlusconi na Itália. Em cada caso, o que estava em disputa não era apenas a conduta individual, mas a resistência das instituições diante da erosão moral trazida pelo poder.

No fundo, o que está em julgamento não é Bolsonaro, mas o pacto democrático brasileiro. Julgar um ex-presidente é, em si, um ato de coragem institucional, um lembrete de que a República é maior do que os indivíduos que ocupam temporariamente seus cargos. A democracia, se quiser sobreviver, não pode ser reduzida a solenidades ou a palavras entoadas em discursos; ela deve ser defendida, sobretudo, quando o preço é submeter ao crivo da justiça aquele que um dia foi a sua mais alta autoridade.

O veredito do Supremo, qualquer que seja, será lido como símbolo. Pode marcar a reafirmação de que a lei é o limite intransponível de qualquer poder, ou pode abrir brechas que corroem o futuro. É nesse terreno delicado que o Brasil se encontra: entre a necessidade de punir e o risco de transformar a punição em bandeira partidária. O desafio, em última análise, é filosófico. Trata-se de saber se a democracia brasileira está madura o bastante para mostrar que não se curva a homens, mas apenas às leis e aos princípios que sustentam a República.

 

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