PENSAMENTO PLURAL Brexit e a policrise global: quando o tempo é o inimigo da democracia, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena lembra como “o Brexit não nasceu apenas de falhas políticas britânicas ou do euroceticismo histórico, mas do momento em que a Europa vivia sua policrise: crise da dívida, fluxo migratório, terrorismo e instabilidade institucional”. Nesse cenário, permanecer no bloco pareceu mais arriscado do que sair. O impacto ultrapassou fronteiras: fortaleceu populismos nos EUA e no Brasil, fragilizou negociações do Mercosul e expôs a vulnerabilidade global diante do protecionismo e da desordem internacional, acrescenta. Confira íntegra...

O Brexit costuma ser explicado por duas narrativas dominantes: a dos erros e traições da corte de David Cameron e a da longa tradição eurocética britânica. Mas há uma leitura mais incisiva: o fator tempo. A decisão de convocar o referendo coincidiu com um dos períodos mais conturbados da história recente da Europa — e do mundo.

Naquele 2015–2016, a União Europeia enfrentava o que Jean-Claude Juncker chamou de policrise. A zona do euro cambaleava sob a ameaça de um colapso grego; milhões de refugiados chegavam pelo Mediterrâneo, fugindo da guerra na Síria; o terrorismo islamista golpeava Paris e Bruxelas; e os britânicos eram convidados a avaliar a pertinência de permanecer no bloco. A instabilidade não era local, mas planetária: sinal de um mundo em que as crises se encadeavam e se retroalimentavam.

Nesse contexto, a campanha do Remain, centrada em cálculos econômicos e no medo de prejuízos financeiros, parecia cega ao drama existencial que dominava as telas: filas em caixas eletrônicos na Grécia, barcos abarrotados no Egeu, carnificina em casas de show. O discurso de “risco” foi apropriado pelos defensores do Leave, que apresentaram a ruptura como a única maneira de salvar o que restava de estabilidade. A promessa de “recuperar o controle” soou como um bote salva-vidas em mar revolto.

Mas o Brexit não foi apenas reflexo da fragilidade europeia. Foi também sintoma de algo maior: a incapacidade das instituições globais de responder a crises entrelaçadas — econômicas, migratórias, securitárias — que desafiavam simultaneamente Estados, blocos regionais e organismos multilaterais. A chamada policrise europeia era, na verdade, expressão local de uma crise mundial de governança.

Esse terremoto político teve ecos no outro lado do Atlântico. Nos Estados Unidos, fortaleceu discursos populistas que, pouco depois, desembocaram na eleição de Donald Trump. No Brasil, acentuou desconfianças em relação a instituições multilaterais e deu fôlego a correntes nacionalistas que enxergaram no Brexit a confirmação de que alianças internacionais são mais ameaças do que oportunidades.

As repercussões atingem ainda o Mercosul, em especial as negociações com a União Europeia. Se o bloco europeu redefiniu prioridades após a saída britânica, o acordo comercial com os países do Cone Sul permanece em suspense. E ambos os blocos revelam vulnerabilidades frente a terceiros: as tarifas protecionistas impostas por Trump, em aço, alumínio e produtos agrícolas, mostraram que nem a robustez da UE nem o potencial do Mercosul bastam para enfrentar isoladamente as tempestades do comércio global. A lição é dura: soberania econômica não é sinônimo de autossuficiência, mas de integração estratégica.

O mundo voltou a experimentar choques simultâneos: pandemia, mudanças climáticas, guerra na Ucrânia, populismos que corroem democracias por dentro. As mesmas condições que tornaram a União Europeia vulnerável e o Brexit plausível se repetem em escala planetária. A lição é clara: decisões tomadas em meio a tempestades raramente produzem estabilidade duradoura.

O Brexit, ao fim, não foi só um divórcio britânico da Europa. Foi um episódio de um drama maior: o das democracias tentando sobreviver em um mundo onde as crises já não se sucedem, mas se acumulam — e cujos reflexos ecoam também nas Américas, no Mercosul e na vulnerabilidade comum diante de choques externos como as tarifas americanas.

 

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