PENSAMENTO PLURAL Carta apócrifa de Amos Oz aos que apropriam Israel como propriedade da direita religiosa e evangelical, por Palmarí de Lucena

Em mais uma carta da série apócrifas, o escritor Palmarí de Lucena traz epístola em que o escritor Amos Oz denuncia a apropriação de Israel por grupos religiosos radicais e líderes evangélicos que instrumentalizam a Bíblia para justificar a opressão. Defende a criação de dois Estados como única via para a paz. Oz reafirma a necessidade de aliados que promovam justiça, não idolatria política, e alerta contra a ocupação eterna como prisão moral. Confira íntegra…

Jerusalém, entre a bruma da memória e o fogo do futuro

Senhores e senhoras que dizem amar Israel,
mas o envolvem com bandeiras que não são suas,

Escrevo-lhes não como profeta — já temos demais —, mas como um homem que acreditou, até o fim, na força frágil da palavra e na persistência da dúvida. Israel, para mim, sempre foi mais que um mapa: foi um projeto moral inacabado. Um lar possível, não uma muralha.

Assusta-me vê-lo, hoje, sequestrado por vozes que confundem fé com fanatismo, patriotismo com exclusão, e a Bíblia com um manual de conquista. Usam os versículos como quem empunha cercas. Chamam de “promessa divina” aquilo que é, na verdade, pretexto político. Transformam histórias sagradas em justificativas para silenciar e oprimir.

Mais do que nunca, vejo a Bíblia sendo usada para negar o próximo. Versículos antigos tornaram-se armas verbais nas mãos daqueles que querem varrer o povo palestino da narrativa – e do território. Em nome de Deus, negam-lhes Estado, nome, dignidade. Isso não é religião. Isso é idolatria do poder.

Mas digo, com clareza e sem hesitação: a paz duradoura só será possível quando houver dois Estados soberanos, Israel e Palestina, vivendo lado a lado com respeito, fronteiras reconhecidas e segurança mútua.

Negar a existência do outro é negar a nossa própria humanidade. Não há justiça sem reciprocidade. Não há futuro para Israel que não inclua um futuro para os palestinos. A ocupação eterna é uma prisão para os dois lados.

Eu não escrevo em nome de partidos nem de governos. Escrevo como quem acredita que há espaço para dois povos sob o mesmo céu. Não como inimigos perpetuamente armados, mas como vizinhos que aprenderam, com custo altíssimo, que nenhuma terra vale mais do que a vida.

Vocês, que proclamam amar Israel de púlpitos distantes, compreendam: não é amor aquilo que sufoca. Não é aliança aquilo que nos instrumentaliza como peça de um jogo geopolítico ou como cumprimento literal de profecias mal lidas.

Israel precisa de aliados que enxerguem sua complexidade, não de devotos que o tratem como um amuleto. Precisa de mãos que semeiem paz, não de dedos que apontem culpados enquanto espalham mais medo.

Se há uma promessa a cumprir, é a de que jamais voltaremos a negar a outro povo o direito que pedimos para nós mesmos.

Com a esperança inquieta dos que ainda acreditam no impossível,
e com o amor rebelde dos que nunca se conformam,

Amos Oz
– Escritor, israelense, e sonhador de duas pátrias em paz.

 

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