O escritor Palmarí de Lucena publica mais uma carta apócrifa, em que Jane Jacobs e Beaurepaire Rohan denunciam a maquiagem urbana disfarçada de restauração, com fachadas pintadas sobre decadência, lojinhas fantasmas mantidas por servidores e renúncias fiscais a proprietários negligentes. Critica o falso progresso que expulsa moradores e esteriliza a cidade real. Pede políticas autênticas, que valorizem a vida, o povo e a dignidade urbana verdadeira. Confira íntegra…
Senhores e senhoras,
Dirigimo-nos a vós como quem conhece o valor de uma calçada viva, de um sobrado habitado, de um comércio pulsante — e não apenas da tinta fresca sobre ruínas sentimentais.
Assistimos, com pesar, ao espetáculo periódico de imóveis antigos sendo pintados como quem cobre uma febre com maquiagem, enquanto o reboco se desfaz por trás das cores novas. Chama-se isso “progresso”, mas é apenas cenografia municipal.
Mais grave ainda é o engodo de manter lojinhas abertas, sabidamente inviáveis, ocupadas por funcionários públicos travestidos de comerciantes, numa tentativa desesperada de simular dinamismo onde só há desinteresse e abandono.
Senhores, o povo reconhece o que é autêntico. Sabe que uma rua com movimento simulado não é rua: é vitrine vazia. Sabe que o centro histórico só é vivo quando moradores ali residem, compram, vendem, festejam e resistem.
Renúncias fiscais concedidas a quem nunca varreu sua calçada, ou a quem deixou casarões apodrecerem para depois vendê-los com incentivos públicos, são um prêmio à negligência e um tapa na cara dos pequenos comerciantes que ali ficaram, mesmo sem glamour, mesmo sem financiamento.
Chama-se isso de “revitalização”, mas o que vemos é remoção disfarçada, higienização cultural, e o rastro de um modelo que valoriza o olhar do turista e despreza o do vizinho.
Pedimos — com a autoridade que só a vivência de rua nos deu — que cessem de pintar para a fotografia, de manter fachadas com sorrisos falsos. Que parem de sustentar lojas de mentira para alimentar relatórios de gestão. Que entendam, de uma vez por todas, que a cidade real precisa de vida real.
Requalifiquem, sim — mas com verdade. Com gente. Com política pública séria, transparente, participativa. Restaurem, sim — mas restaurem o espírito do lugar, não apenas suas paredes.
A cidade não se contenta em parecer viva. Ela exige existir com dignidade.
Com indignação lúcida e esperança teimosa, Jane Jacobs & Beaurepaire Rohan
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