PENSAMENTO PLURAL Carta apócrifa de Ruy Barbosa aos senhores líderes dos partidos filologistas, por Palmarí de Lucena

Nesta carta imaginária, da séria apócrifa do escritor Palmarí de Lucena, Ruy Barbosa adverte os líderes partidários sobre a corrupção insidiosa que, embora legal na forma, é moralmente devastadora. Critica a manipulação semântica que encobre vícios sob o véu da retórica. Com ironia fina, exorta a devolver sentido às palavras e dignidade à política, alertando que o povo, embora silencioso, tem faro aguçado para a fraude disfarçada. Confira íntegra…

Senhores, 

Permitam-me dirigir-lhes estas linhas, não como quem fala do alto de alguma superioridade moral — tão fora de moda nos dias que correm — mas como um espectro curioso que, do além, ainda observa os movimentos da Pátria com a angústia de quem amou demais e viu de menos.

O que me inquieta, senhores, não são os escândalos ruidosos, os desvios grotescos, os atos de corrupção com cheiro e cor, que por sua desfaçatez logo encontram, ao menos, a censura da crônica policial.
O que me inquieta é a outra, a corrupção subaguda. Aquela que não se apresenta como doença, mas como adaptação. Aquela que se infiltra sem estardalhaço, sem romper o decoro aparente da legalidade.
Uma espécie de anemia moral crônica que não mata de imediato, mas sabota silenciosamente a vitalidade do organismo democrático.

Essa corrupção é, senhores, vossa especialidade.
Não me refiro aos vossos atos — não os conheço em minúcia. Refiro-me ao talento peculiar que cultivais para nomear o inominável, para dar forma retórica ao indecente, para operar, com requinte filológico, a substituição do princípio pelo arranjo, da ética pelo adjetivo.

Chamais de “governabilidade” o que é cumplicidade.
De “articulação” o que é troca.
De “representatividade” o que é clientelismo.
E quando se exige definição, empunhais o verbo com tal perícia que o vício se disfarça de virtude, e a omissão ganha ares de prudência.

Dominais com maestria os atalhos do regimento e os labirintos da gramática parlamentar.
Sois, afinal, filologistas do poder — peritos em significar sem comprometer, em prometer sem dizer, em dizer sem se obrigar.

Mas cuidado.
Há uma sabedoria que brota do chão batido e das filas de espera, dos guichês que não funcionam e das escolas sem aula.
O povo pode não ter vocabulário jurídico, mas tem olfato.
E a corrupção subaguda, senhores, tem cheiro.
Cheiro de mofo institucional, de papel carimbado por mãos que tremem não de emoção, mas de conveniência.

E esse cheiro já penetrou o tecido nacional.
Insinua-se pelos corredores do funcionalismo, contamina o espírito público e transforma a exceção em norma.
É uma diátese, para usar linguagem médica, que torna o corpo social predisposto à doença.
E quando a doença é a naturalização da esperteza como virtude, o colapso não se dá com um estrondo — mas com um silêncio.

Não é com leis novas que se purifica esse ambiente.
É com a coragem de chamar as coisas pelo nome.
Com o gesto ético antes da manobra verbal.
Com a restituição do sentido original das palavras.

Sim, senhores filologistas, vós que tanto amais o discurso: devolvei à palavra “república” sua dignidade.
À palavra “mandato”, sua sacralidade.
À palavra “público”, seu pertencimento.

Porque se continuardes a torcer as palavras como se fossem varas de bambu a serviço das circunstâncias, restará apenas um idioma em ruínas.
E ruínas, por mais belas que pareçam aos olhos do turista político, não abrigam mais ninguém.

Com o respeito de quem amou a verdade até a calvície das têmporas,
vos escreve — de onde já não se vota, mas ainda se pensa —
Ruy Barbosa

 

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