Nesta carta apócrifa pungente, concebida pelo escritor Palmarí de Lucena, Sydney Carton (personagem de Charles Dickens) ergue-se das cinzas da Revolução para alertar os jovens seduzidos pela polarização violenta. Denuncia o ciclo de ódio que transforma causas justas em tribunais de exceção. Em tempos febris, clama por coragem verdadeira: ouvir o adversário, semear pontes, recusar o martírio vaidoso. Despolarizar, diz ele, é o novo ato revolucionário. Confira íntegra…
Do limiar entre a vida que finda e o sonho que permanece, ergo-me para falar-vos, filhos de um tempo febril. Conheço o fascínio da barricada, as promessas flamejantes de cada estandarte. Em minha Paris — e também em minha Londres — vi nascer revoluções que juravam salvar o povo, mas se perderam na mesma lâmina que prometiam banir.
Hoje a história rui de novo sob o peso da polarização feroz, que transforma cada praça em trincheira moral. Vocês dizem “nós” ou “eles” com o ardor de quem carrega a única verdade, e nesse eco agressivo a humanidade do outro desaparece. Foi assim que, na minha era, se ergueu a guilhotina: não pelas mãos de monstros, mas de cidadãos certos de que só o adversário era o mal encarnado.
Percebi tarde que a violência política é um fogo que consome os próprios incendiários. Quando se lança o grito “morte aos traidores”, não tarda até que novo rótulo de traidor recaia sobre nós mesmos. O círculo de suspeita fecha-se, e o sonho de justiça degenera em medo coletivo.
Se quereis mudar o mundo, não vos deixais embriagar pela lógica simplista do amigo versus inimigo. A coragem que importa é a de escutar quem vos fere, de ceder um passo sem ceder a dignidade, de temperar a ira com uma ternura impossível — essa que fez de mim, bêbado e cínico, um homem disposto a entregar a vida para que outro vivesse.
Não confundais sacrifício com espetáculo de martírio, nem ação com linchamento moral. Despolarizar é ato revolucionário: exige negar o conforto do coro, enfrentar a própria tribo quando ela erra e recusar a mentira de que só quem pensa igual merece compaixão.
Que vossa militância seja ponte, não forca; semeadura, não fogueira. Plantai debates onde hoje há silêncios hostis; guardai em vós a lembrança de que até o mais convicto adversário carrega, como vós, o pavor de ser esquecido.
Se o mundo há de renascer, não o fará a partir de ossos empilhados, mas de mãos entrelaçadas, ainda que trêmulas. Legai aos que virão um solo menos envenenado pelo rancor do nosso tempo. E, quando a tentação da violência vos chamar de salvadores, lembrai do que sofri — para que não preciseis sofrer o mesmo.
Com memória, advertência e esperança,
Sydney Carton
(Um dos personagens mais complexos e comoventes de História de Duas Cidades, de Charles Dickens)
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