Em mais uma série cartas apócrifas, o escritor Palmarí de Lucena escreve um pungente texto, inspirado em Ulysses Guimarães e “nos que ainda acreditam que o Congresso Nacional é a casa do povo, e não o cofre dos que se equeceram dele. Na espístola, Ulysses Guimarães adverte os parlamentares: o povo não exige perfeição, mas decência e coragem. Denuncia a distorção da Constituição como escudo de privilégios e conclama sobriedade, escuta e reconexão com a realidade das ruas. A democracia exige esforço contínuo — não para proteger cargos, mas para honrar o espírito da República. Confira íntegra…
Senhores e senhoras que se assentam hoje nas cadeiras do Parlamento,
Não vos escrevo com saudade nem rancor. Escrevo com um apelo maduro, forjado em lutas que a memória nacional ainda não apagou, embora tantos tentem esmaecer. Faço-o não como espectro de Ulysses Guimarães, nem como símbolo de qualquer sigla — mas como eco do cidadão que fui, e do cidadão que em cada um de vocês deveria ainda respirar.
Quando me disseram que a democracia era um processo lento, imperfeito e frustrante, acreditei. Mas também entendi que, mesmo com todos os seus tropeços, ela era o único solo fértil onde a dignidade humana podia enraizar-se sem medo de ser arrancada.
O Parlamento, meus senhores e senhoras, não é um auditório para monólogos inflados, nem uma feira de interesses trocados por emendas ou aplausos fáceis. O Parlamento é o lugar do dissenso que constrói, do debate que não teme a escuta, do voto que respeita o invisível.
É verdade que o povo cobra com impaciência. E tem razão. Ele espera, há décadas, que o Congresso seja mais que um espelho dos poderosos e se transforme em farol dos desvalidos. Mas o povo não cobra perfeição — cobra decência, coerência, coragem.
Não é falta de recursos que paralisa a nação: é falta de grandeza.
A Constituição que ajudei a proclamar, aquela que chamei de “Cidadã”, foi feita para servir ao povo, não para blindar os que dele se afastam. Ela é cláusula de confiança, e não armadura contra o julgamento público. Quando os senhores dela abusam para proteger privilégios ou retardar a justiça, não é a letra da lei que traem — é o espírito da República que aviltam.
Não lhes peço heroísmo. Peço sobriedade. Que votem pensando no futuro e não na próxima eleição. Que resistam à tentação do populismo que entrega muito em palavras e nada em ação. Que entendam, enfim, que o verdadeiro prestígio de um parlamentar não se mede pela visibilidade, mas pela credibilidade. E se um dia se perderem nesse labirinto de vaidades e algoritmos, peço que voltem a andar a pé.
Caminhem por onde a cidade sangra, conversem com quem espera horas por um ônibus, ou se vê diante de um hospital sem leito. Perguntem, com honestidade, se aquilo que fazem aqui ecoa lá.
Pois o silêncio do povo não é sinal de aceitação. É, muitas vezes, o cansaço de quem gritou demais e
não foi ouvido.
Sei que o tempo exige pressa. Mas que a pressa nunca vos roube a lucidez. Sei que o poder fascina. Mas que ele nunca vos roube a medida. E sei que a democracia dá trabalho. Mas é um trabalho nobre. É o único que vale a pena continuar.
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