Nesta carta apócrifa, inspirada nos ensinamentos de João XXIII e no espírito do Concílio Vaticano II, o Papa adverte contra os mascates do extremismo que comercializam o medo e reduzem o mundo a rótulos ideológicos. Clama por diálogo, recusa simplificações entre direita e esquerda, e afirma que só a caridade e a escuta restauram a humanidade perdida. Confira íntegra…
Filhos queridos,
escrevo-vos do silêncio sereno da eternidade, onde as guerras ideológicas já não fazem eco e os púlpitos não disputam a primazia da verdade. Mesmo daqui, no entanto, escuto o alarido que se ergue entre vós — não é o rumor das praças pedindo justiça, mas o ranger de palavras empunhadas como armas, o tilintar de ideias negociadas como bugigangas nas feiras da vaidade política.
Vós que vos apresentais como arautos da salvação nacional, detentores exclusivos da moral, negociantes do medo e do ressentimento — a vós me dirijo. Chamo-vos mascates não por desprezo, mas por misericórdia. Pois tendes vendido o zelo como rancor, a fé como doutrina de ódio, e a justiça como privilégio. E o mais grave: fazeis isso em nome de Deus, da pátria, da liberdade ou da igualdade, mas sem a menor sombra de caridade.
Foi para remediar feridas como estas que convoquei, com a bula Humanae Salutis, o Concílio Vaticano II. Não para condenar o mundo moderno, mas para iluminá-lo com a luz do Evangelho. Não para levantar barricadas contra os que pensam diferente, mas para abrir portas ao entendimento e à reconciliação. Dizia então, e repito agora: “Os profetas da desgraça não têm lugar na missão da Igreja.” Ainda assim, multiplicaram-se.
A verdade não se negocia em slogans, tampouco floresce no terreno envenenado da exclusão. Aqueles que dizem proteger a liberdade e o povo, mas se negam ao diálogo e ao cuidado, já se fizeram carcereiros da própria alma. Recordai: não é clamando “família” que se ama o próximo; não é exaltando o “empreendedor” que se redime o explorado; não é eliminando o Estado que se constrói justiça — assim como não é multiplicando siglas ou hashtags que se realiza a dignidade humana.
Evitem, peço-vos, as simplificações apressadas, as fórmulas cansadas de dividir o mundo entre direita e esquerda, puros e impuros, iluminados e perdidos. É assim que se perde a nossa humanidade — quando deixamos de ver no outro um semelhante e passamos a vê-lo apenas como rótulo. O amor cristão jamais poderá florescer onde a política se faz trincheira moral.
A Igreja que amei não se ergue sobre muros, mas sobre pontes. O mundo que sonhei para vós não é um campo de batalha entre tribos enraivecidas, mas um lar comum onde a fé e a razão, a tradição e a mudança, a justiça e a misericórdia convivam como irmãs. Temo, no entanto, que vós — seduzidos por extremismos travestidos de virtude — estejais construindo desertos de escuta, mercados de ressentimento e catedrais de ruído.
Em nome do espírito do Concílio, que não morreu, mas dorme no coração dos justos, rogo-vos: desinflai os peitos, aquietai os dedos, desarmem as línguas. O mundo não precisa de mais cruzadas. Precisa de samaritanos.
Voltem ao povo não para usá-lo como massa, mas para servi-lo como irmãos. Voltem ao Evangelho não como espada, mas como lâmpada. Pois a caridade — repito — é mais revolucionária do que o rancor, e o perdão constrói mais que qualquer denúncia.
Que cada um de vós, ao olhar para seu adversário, veja não um inimigo, mas um espelho. Pois só assim o mundo será, enfim, digno da paz que tanto proclamais em vossas bandeiras.
Com esperança indelével,
João, servo dos servos de Deus, que acreditou na bondade do homem e na possibilidade do entendimento.
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