PENSAMENTO PLURAL Carta apócrifa sobre os malefícios do quiproquó parlamentar, por Palmarí de Lucena

Nesta carta apócrifa, um servidor aposentado denuncia o teatro farsesco do Parlamento brasileiro, onde congressistas trocam a Constituição por conchavos e o mérito por nepotismo. O quiproquó legislativo vira metástase institucional, mascarando interesses escusos com discursos de governabilidade. A carta conclama à juventude ética que resista, lembrando que o truque não substitui a transformação real. Confira íntegra do texto concebido pelo escritor Palmarí de Lucena…

À Juventude Brasileira que ainda não se vendeu

Estamos assistindo, entre atônitos e resignados, à repetição de um espetáculo burlesco no picadeiro da República, onde congressistas — travestidos de estadistas — encenam farsas com roteiro sempre previsível. São malabaristas de emenda, ventríloquos de gabinetes ocultos e acrobatas da conveniência, que com um sorriso prestativo à câmera e um punhal de conchavos na manga, emparedam os demais poderes da República em nome de uma harmonia tão falsa quanto estratégica.

A velha prática do quiproquó legislativo — a confusão premeditada de interesses públicos com benesses privadas — tornou-se, hoje, a moeda de troca mais valiosa nas votações de interesse do Executivo. Não há mais debates. Há barganhas. Não há mais ideias. Há adendos secretos. Não há mais reforma. Há loteamento. Enquanto isso, os que juraram respeitar a Constituição promovem ataques abertos à impessoalidade, ao concurso público e à técnica administrativa, como se meritocracia e planejamento fossem inimigos da pátria.

Pior ainda: por trás das manobras escusas, insinua-se o projeto de implantar um semipresidencialismo de facto, à revelia da Constituição e dos interesses do povo, conduzido por parlamentares medíocres em substância, mas ágeis em autopromoção. Medíocres esses que chegaram ao poder não por mérito nem por ideias, mas por herança patrimonialista, alianças familiares eternizadas em redutos eleitorais e vínculos subterrâneos com setores que visam apenas preservar privilégios. Esses personagens não representam o povo: representam cartórios eleitorais, velhos coronéis em roupas novas, e interesses corporativos travestidos de bem comum.

Blindados por mandatos sucessivos e por acordos de ocasião, tomam para si as rédeas da máquina pública, suprimindo, pouco a pouco, a independência entre os Poderes e entregando à extrema-direita o palco para a consolidação de uma ditadura legislativa disfarçada de normalidade democrática.

Sêneca, com a sabedoria dos séculos, já alertava: “Vê aqueles que louvam o poder? São inimigos, ou podem sê-lo.” Mas nossos tribunos contemporâneos, blindados por assessorias jurídicas e por lobbies regionais, seguem de olhos vendados e ouvidos fechados, tão fiéis à lógica do fisiologismo quanto à reeleição em série.

Munidos de um kit político de sobrevivência, recheado de manobras regimentais, verbas disfarçadas de patriotismo e blindagens articuladas nos bastidores, constroem pontes para si mesmos enquanto dinamitam os pilares do serviço público profissionalizado. O concurso, esse instrumento democrático que garante a inclusão de brasileiros de todas as origens nos quadros do Estado, é tratado por muitos parlamentares como uma ameaça à sua clientela. Preferem os cargos de confiança, os apadrinhados, os que se curvam por gratidão — não por competência.

Aos cientistas, servidores concursados, professores e agentes da lei, restam as agressões veladas e os cortes orçamentários. É a revanche dos medíocres contra os qualificados. A vitória dos que se elegem com marketing sobre os que servem com ética. E a transformação da política em uma arte de iludir — não de servir.

Mas deixemos claro: o quiproquó, quando se instala como norma no Parlamento, vira metástase institucional. Um câncer sorridente, que esconde sua letalidade atrás de acenos à governabilidade. E que, quando não contido, termina por sufocar os próprios pulmões democráticos da Nação.

Reescrever o pacto republicano exige coragem para desmontar essa engrenagem de trocas e omissões. E exige memória: para que o povo não confunda, outra vez, truques de mágica com transformação real.

Um Concursado Aposentado que Viu a República Ser Loteada.

 

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