PENSAMENTO PLURAL Carta do primeiro prefeito eleito de Hiroshima após a bomba, por Palmarí de Lucena

O escritor Palmarí de Lucena Inspira-se na recente visita à Hiroshima em sua crônica. “Em Hiroshima, aprendemos que o espaço público não é sobra: é semente. Plantamos parques onde houve ruínas, devolvemos os rios à cidade, criamos avenidas largas não para correr, mas para conviver”, diz Palmarí. Confira íntegra…

Aos prefeitos, planejadores e cidadãos das cidades que ainda podem escolher seu destino

Hiroshima, 19 de junho de um ano qualquer que ainda guarda memória

Prezadas senhoras, prezados senhores,

Do silêncio que paira sobre os escombros do que fomos, nasceu a Hiroshima que hoje se ergue como símbolo — não de força bruta, mas de reconstrução com alma. Escrevo-lhes como quem teve de redesenhar uma cidade com as cinzas ainda quentes nos dedos, e que aprendeu, com o sofrimento, que nem tudo que se ergue é progresso, nem tudo que reluz é futuro.

Hoje, acompanho com inquietude os caminhos de cidades litorâneas tão belas quanto vulneráveis, como João Pessoa, que conheci por relatos como um mosaico de verde, mangue e mar — agora ameaçado não por bombas, mas por interesses tão destrutivos quanto invisíveis. Falo do ideatismo do turismo predatório, que se instala sorrateiro como promessa de desenvolvimento e termina corroendo o que há de mais precioso: a dignidade dos espaços públicos, a paz das comunidades tradicionais e a identidade das cidades.

Não há glória em encher os calçadões de festas patrocinadas enquanto se calça o mangue para dar lugar a empreendimentos que servem a poucos e excluem os muitos. Há algo de trágico quando a cidade se transforma em vitrine — e o cidadão vira figurante. Quando o espaço público vira moeda de troca, o chão da cidade deixa de ser comum e passa a ser cercado, policiado, mercantilizado.

Em Hiroshima, aprendemos que o espaço público não é sobra: é semente. Plantamos parques onde houve ruínas, devolvemos os rios à cidade, criamos avenidas largas não para correr, mas para conviver. A reconstrução que nos moveu não foi para agradar investidores, mas para reconciliar a cidade consigo mesma. E tudo isso só foi possível porque resistimos às pressões que queriam apressar o que precisava ser pensado, e privatizar o que pertencia a todos.

Não se deixem seduzir pelos slogans fáceis: cidade inteligente, turismo de eventos, revitalização. São palavras boas quando nascem da escuta e do planejamento — mas são perigosas quando ocultam o avanço de interesses que expulsam, em vez de acolher. O turismo não pode ser colônia de veraneio para elites de fora, nem desculpa para destruir o que torna a cidade viva.

Se posso lhes oferecer algo — mais que conselhos — é o testemunho: sobrevivemos ao pior não cedendo ao mais fácil. A Hiroshima que floresceu das cinzas é uma cidade que decidiu que não haveria progresso se ele não pudesse ser dividido. E progresso dividido só existe quando o espaço é comum, quando a sombra da árvore alcança a todos, e quando o turista é bem-vindo porque foi convidado com respeito, não porque comprou tudo ao redor.

Desejo que as lideranças de João Pessoa, e de todas as cidades que hoje se veem tentadas a ceder seus verdes e suas praias ao altar do lucro rápido, escutem o que as árvores ainda dizem, antes que calem. Que defendam suas praças, seus rios, seus moradores antigos — porque eles são a alma do lugar.

Reconstruir é resistir à pressa. Planejar é ter coragem de dizer “não” ao que destrói em nome do que enriquece.

Com esperança e ternura urbana,

Shinzo Hamai
Prefeito de Hiroshima (1947–1955)
Sobrevivente e jardineiro da paz

* Palmarí inspira-se por uma visita à Hiroshima renascida, esta obra (imagem acima) evoca o embate entre progresso e memória. Ao centro, uma árvore solitária resiste entre sombras e torres, símbolo do que resta quando o concreto avança. 

 

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