PENSAMENTO PLURAL Céus militarizados não são céus seguros, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritot Palmarí de Lucena alerta quanto à crescente militarização do Caribe e do norte da América do Sul transforma o espaço aéreo e marítimo em zonas de risco para a aviação e a navegação civil. “A presença simultânea de caças, drones, radares e submarinos, operando sem coordenação plena com autoridades civis, aumenta a chance de erros de identificação e reações precipitadas”, diz. Sem protocolos regionais integrados, pequenas falhas podem gerar acidentes graves. A segurança depende de cooperação técnica, transparência e revisão das rotas e procedimentos atuais. Confira íntegra…

A militarização acelerada do Caribe e do norte da América do Sul vem transformando um dos corredores aéreos mais importantes do hemisfério em um espaço de risco crescente para a aviação civil. O céu, tradicionalmente entendido como território de previsibilidade, tornou-se um ambiente saturado por navios de guerra, caças, radares avançados e drones, que agora operam lado a lado com aeronaves comerciais. Essa convivência, antes pontual, consolidou-se como rotina — e rotinas militarizadas raramente são compatíveis com a margem de segurança exigida pelo transporte aéreo.

A história da aviação demonstra que tragédias envolvendo aviões civis abatidos por erro militar seguem um padrão bem estabelecido: regiões congestionadas, operações simultâneas de múltiplos países, radares sobrecarregados e ausência de comunicação eficaz entre autoridades civis e militares. Foi assim nos episódios de KAL 007, Iran Air 655 e MH17, cada um revelando, a seu modo, como falhas sistêmicas podem transformar o espaço aéreo em cenário de erro letal. Os elementos presentes nesses casos — tensão geopolítica, confusão de sinais, decisões tomadas sob pressão — começam a se repetir, de maneira discreta, porém constante, no Caribe atual.

A região concentra hoje bases aéreas operacionais, exercícios navais frequentes, rotas de patrulha permanentes e um uso crescente de drones de médio e longo alcance. Essas plataformas, comandadas por diferentes países e por vezes com finalidades divergentes, sobrepõem-se às rotas civis sem mecanismos regionais sólidos de coordenação. O resultado é um ambiente complexo, no qual aeronaves comerciais atravessam, diariamente, zonas submetidas a vigilância militar intensa. Cada radar ativado, cada procedimento defensivo, cada drone em patrulha adiciona uma variável ao sistema — e quanto mais variáveis, maior a chance de falha.

O risco não se limita ao ar. No mar que acompanha esse espaço aéreo tenso, cresce a presença de submarinos de propulsão nuclear e de navios equipados com sistemas de combate de alta sofisticação. Em algumas áreas, pequenas embarcações civis têm sido monitoradas ou mesmo abordadas sob suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas, sem comprovação prévia ou inspeção física antes da aplicação de força. A combinação de sensores automatizados e regras de engajamento ampliadas cria um terreno perigoso, onde um pescador pode ser confundido com contrabandista. Para embarcações frágeis, a diferença entre ser identificado corretamente e ser tratado como ameaça pode depender apenas de segundos.

Essa assimetria — de um lado, forças militares dotadas de tecnologia avançada; de outro, aeronaves e embarcações civis sem meios adequados de identificação — amplia o risco de reações precipitadas. Não se trata de atribuir intenção hostil a qualquer Estado específico, mas de reconhecer que sistemas complexos operando em proximidade extrema tendem a produzir erros quando não há protocolos de comunicação claros, integrados e transparentes.

A resposta necessária é essencialmente técnica. Países da região precisam revisar rotas aéreas, estabelecer canais diretos de coordenação entre defesa aérea e aviação civil e padronizar regras para operação de drones militares próximos a aeroportos e corredores comerciais. A criação de mecanismos regionais de monitoramento conjunto — capazes de emitir alertas sobre exercícios militares, mudanças repentinas de postura defensiva ou circulação de plataformas altamente sensíveis — é medida que se impõe. Não se trata de alinhar posições políticas, mas de reduzir ambiguidades operacionais que podem levar a acidentes evitáveis.

O Caribe sempre conviveu com presença militar externa, mas nunca com a intensidade e a proximidade atuais. A evolução tecnológica ampliou a capacidade de detecção, resposta e ataque, mas reduziu a tolerância a desvios e erros. Persistir na ideia de que esse acúmulo pode coexistir indefinidamente com o tráfego aéreo comercial sem mecanismos de coordenação equivalentes é ignorar as lições oferecidas por décadas de incidentes semelhantes em outras partes do mundo.

A segurança de passageiros, tripulações e comunidades costeiras exige reconhecer que o céu — e o mar — já não são mais neutros. Transformar esse ambiente novamente em espaço previsível depende de antecipar riscos, não de reagir a eles. E antecipar riscos, nesse caso, significa agir antes que um erro involuntário interrompa vidas e produza, tarde demais, um consenso que já deveria existir.

 

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