PENSAMENTO PLURAL Ciência sob cerco: entre a neutralidade e a armadilha política, por Palmarí de Lucena

O escritor Palmarí de Lucena postula, em seu comentário, que a “ciência tornou-se alvo político, seja nos EUA, com cortes e ataques sob Trump, seja no Brasil, onde o negacionismo e a desinformação durante a pandemia minaram a saúde pública”. Ainda assim, lembra, o Programa Nacional de Imunizações e instituições como Fiocruz e Butantan mostraram sua força ao conter a COVID-19. “O desafio é blindar a ciência de narrativas ideológicas e reafirmá-la como patrimônio coletivo e essencial à democracia”, complementa. Confira íntegra...

A ciência, antes vista como patrimônio comum, tornou-se alvo preferencial em disputas políticas. Nos Estados Unidos, o governo Trump desfez conselhos de vacinas, cortou bolsas de pesquisa e tentou moldar descobertas ao interesse ideológico. Nesse ambiente, quando cientistas defendem sua autonomia, são acusados de militância; quando se calam, permitem que a narrativa oficial prevaleça. É a armadilha perfeita, que compromete tanto a credibilidade quanto o financiamento da pesquisa.

No Brasil, o fenômeno se repete com consequências devastadoras. Durante a pandemia, o negacionismo e as campanhas de desinformação minaram a saúde pública, retardaram medidas básicas de proteção e estimularam movimentos antivacina que abriram espaço para o retorno de doenças como o sarampo. Ainda assim, a história recente mostra que o país possui instrumentos robustos para enfrentar crises sanitárias. O Programa Nacional de Imunizações, criado em 1973, foi responsável por erradicar a varíola, controlar a poliomielite e manter uma das coberturas vacinais mais altas do mundo por décadas, sendo referência internacional em saúde pública.

Esse legado foi crucial durante a pandemia de COVID-19. Apesar da descoordenação inicial e da resistência de setores negacionistas, o Brasil conseguiu frear o avanço da doença com a adoção de medidas sanitárias, como o uso de máscaras e o distanciamento social, e, sobretudo, com a vacinação em larga escala. Fiocruz e Instituto Butantan, pilares da ciência nacional, lideraram a produção e a distribuição de vacinas que salvaram milhões de vidas, reafirmando a importância da ciência e da infraestrutura pública de saúde.

A experiência demonstra que ciência e política estão sempre em diálogo. Cabe aos governos financiar pesquisas e traduzi-las em políticas públicas, mas o problema surge quando interesses de curto prazo tentam reescrever a realidade, transformando fatos em versões convenientes. Quando isso ocorre, o risco é duplo: a erosão da confiança pública e o enfraquecimento das instituições que sustentam a produção científica.

O desafio, portanto, não se resolve apenas com a denúncia do problema. É preciso agir de forma consistente e articulada. O Brasil pode reforçar a educação científica desde a escola básica, cultivando pensamento crítico; promover campanhas permanentes de valorização da vacinação em linguagem clara e acessível; estreitar parcerias entre governo, universidades e imprensa para garantir transparência na comunicação; responsabilizar plataformas digitais pela disseminação de conteúdos comprovadamente falsos; e valorizar instituições como Fiocruz e Butantan, que funcionam como âncoras de confiança em meio ao mar de boatos.

Essas medidas não eliminam a polarização, mas podem mitigar seus efeitos e devolver à ciência o papel que lhe cabe: servir ao interesse coletivo e não a narrativas de ocasião. Defender a ciência, em qualquer país, não é tomar partido, mas proteger vidas e preservar um dos pilares da democracia moderna.

 

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