
O texto do escritor Palmarí de Lucena afirma que nenhuma doutrina militar séria — do Exército Brasileiro, da ONU ou da OTAN — aceita civis como alvos legítimos. A força letal é sempre excepcional e condicionada à necessidade, legalidade e proporcionalidade. Em operações internas, militares atuam como agentes da lei, não como combatentes. A ONU impõe proteção ativa aos civis e investigações rigorosas. A OTAN exige precisão técnica e controle de danos colaterais. Democracias preservam a legitimidade quando controlam a violência estatal. Confira íntegra...
Em tempos de banalização da violência estatal, convém reafirmar o óbvio: civis não são alvos. Nem para o Exército Brasileiro, nem para a Organização das Nações Unidas, nem para a OTAN. Nenhuma doutrina militar séria no mundo civilizado autoriza que a morte de inocentes seja tratada como “efeito colateral” inevitável, muito menos como instrumento de política pública. O que existe, ao contrário, é um consenso técnico, jurídico e moral: o uso da força letal é sempre excepcional e a proteção de civis é obrigação central de qualquer operação armada legítima.
No Brasil, os manuais do Exército são claros. Em operações de Garantia da Lei e da Ordem, os militares não agem como combatentes, mas como agentes da lei. Isso significa que não há inimigo, não há “frente de batalha” e não existem alvos humanos legítimos. A lógica é policial, não bélica. O soldado está submetido ao mesmo dever de cautela, proporcionalidade e legalidade que rege todas as forças estatais encarregadas da proteção da população. A força letal, nesse contexto, não é instrumento de rotina, mas último recurso, admissível apenas diante de ameaça real, atual e inevitável.
A ONU vai ainda além. Em suas missões de paz, a proteção do civil não é apenas um limite ético, mas o próprio centro da missão. Não se trata apenas de não matar; trata-se de proteger ativamente. A captura é preferível à neutralização. A dissuasão precede o confronto. A força é sempre a exceção. Quando um civil morre em operação sob mandato da ONU, não se fala em “fatalidade operacional”. Fala-se em falha grave. E ela é apurada com rigor, publicidade e responsabilização institucional.
A OTAN, por sua vez, traduz esse mesmo princípio em técnica operacional. Não há disparo sem identificação positiva de alvo. Não há ataque sem cálculo de risco civil. Não há emprego de armamento pesado sem análise prévia de dano colateral. O soldado privado de conveniência tática é, muitas vezes, deliberadamente exposto a mais risco para reduzir a chance de dano a não combatentes. Não é ingenuidade humanitária; é doutrina profissional. Proteger civis não fragiliza forças armadas modernas — é parte essencial de sua legitimidade.
Esse consenso internacional deveria servir de antídoto contra uma tentação recorrente no debate público brasileiro: a de normalizar o inaceitável. Quando mortes de civis são relativizadas como “efeitos inevitáveis da repressão”, o Estado deixa de ser garantidor de direitos e passa a operar no limite da barbárie. Não é coincidência que sociedades que aceitam isso acabem aceitando, pouco depois, o arbítrio como regra.
Exércitos profissionais não se medem por sua capacidade de matar, mas por sua disciplina em não matar quando não é necessário. Democracias não se definem pela eficiência da violência, mas pelo controle rigoroso sobre ela. Quem defende o contrário talvez deseje força sem freio, mas não pode fingir que isso é civilização.
No fim das contas, a doutrina é clara, a ética é simples e a lei é inequívoca: civis não são alvos. Nunca foram. Nunca poderão ser. Tudo o que relativiza essa verdade não é realismo estratégico, mas desistência moral — e nenhum país que aceita isso permanece democrático por muito tempo.
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