PENSAMENTO PLURAL Como Hitler enterrou a democracia alemã: um aviso que ecoa no tempo, por Palmarí de Lucena
Em sua mais recente crônica, o escritor Palmarí de Lucena lembra como “Hitler destruiu a democracia alemã utilizando seus próprios mecanismos institucionais, explorando crises e manipulando o parlamento”. O colapso da República Weimar evidencia como as democracias podem ser corroídas gradualmente. “Hoje, discursos extremistas, ataques à imprensa e erosão das instituições mostram que esse perigo persiste, exigindo vigilância constante para preservar a liberdade”, pontua. Confira íntegra…
Em uma manhã fria de janeiro, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da República de Weimar, dando início a uma tragédia política que transcenderia a história da Alemanha e serviria de alerta sobre a fragilidade das democracias. A ironia está no fato de que ele destruiu a democracia utilizando os próprios mecanismos constitucionais que deveria proteger. A República de Weimar já estava enfraquecida por crises políticas e uma Constituição vulnerável a manobras legislativas. Hitler, que por anos sabotara governos e inflamava a oposição, compreendia essas brechas e as explorou com frieza. Em 1930, prometeu que, ao chegar ao poder, moldaria o governo conforme seus próprios interesses.
Ao assumir o cargo de chanceler, Hitler percebeu que o apoio popular não bastava. Seu partido detinha apenas 37% das cadeiras no Reichstag, insuficiente para governar sozinho. Manipulando alianças, justificou a concentração de poder e buscou um instrumento legal que lhe garantisse plenos poderes: uma lei de autorização que o permitiria governar sem o parlamento. Para pavimentar esse caminho, iniciou um processo sistemático de eliminação da oposição. Propôs banir o Partido Comunista, mas, temendo revoltas, optou por um golpe gradual, convocando novas eleições e aparelhando o Estado. Nomeou Hermann Göring como ministro interino do interior da Prússia, encarregando-o de militarizar a polícia e armar os camisas-pardas, instaurando um clima de terror.
O incêndio do Reichstag, em fevereiro de 1933, foi o pretexto ideal para a fase final de sua estratégia. O parlamento foi consumido pelo fogo, e Hitler prontamente acusou os comunistas de tramarem um golpe. Convencendo o presidente Hindenburg a assinar um decreto de emergência, suspendeu direitos civis, autorizou prisões arbitrárias e silenciou a oposição. Com os comunistas banidos, Hitler garantiu a maioria nas eleições de março e, dias depois, apresentou ao Reichstag a “Lei para Remediar a Necessidade do Povo e do Reich”, que lhe concedia plenos poderes. Otto Wels, líder dos Social-Democratas, fez um discurso defendendo a democracia, mas suas palavras foram abafadas pelo avanço nazista. A lei foi aprovada com 441 votos a favor e apenas 94 contra, selando o fim da democracia alemã.
O grande paradoxo da democracia é que ela pode oferecer os meios para sua própria destruição, uma estratégia que Hitler explorou com maestria sombria. Joseph Goebbels resumiu essa ironia ao afirmar que a democracia fornecia aos seus inimigos os próprios instrumentos para aniquilá-la. O colapso da República de Weimar não foi um acidente, mas um processo meticuloso de corrosão das instituições e manipulação da opinião pública. Esse episódio não pertence apenas ao passado, pois os mesmos padrões se repetem nas democracias contemporâneas. A ascensão de discursos extremistas, o ataque sistemático à imprensa, a criminalização da oposição e a polarização extrema são sintomas preocupantes que não podem ser ignorados.
A nazificação de uma democracia não ocorre de forma abrupta. Ela se instala aos poucos, à medida que o Estado de Direito é relativizado, a imprensa é desacreditada, os direitos civis são flexibilizados e o debate público se torna refém de narrativas conspiratórias. Hitler usou uma crise para justificar medidas autoritárias, e essa tática se repete em diversos contextos. O alerta que emerge desse episódio é que democracias não se sustentam apenas em leis ou instituições, mas na cultura política que as protege. Quando a intolerância cresce, o caminho para o autoritarismo se abre.
A tragédia da República de Weimar não foi apenas a ascensão de Hitler, mas também a omissão de setores da sociedade que permitiram que isso ocorresse. Líderes políticos acreditavam que poderiam controlá-lo. Empresários financiaram sua ascensão esperando estabilidade. O eleitorado, desgastado por crises, viu no radicalismo uma solução rápida. Quando perceberam o erro, já era tarde demais. A lição da história é clara: democracias não são destruídas apenas por golpes militares, mas também por processos internos de erosão institucional. O maior perigo não é apenas a ascensão de líderes autoritários, mas a aceitação silenciosa de medidas que fragilizam as liberdades fundamentais.
A chama que consumiu o Reichstag pode se repetir, sob novas formas e pretextos, em qualquer lugar do mundo. O único antídoto é a vigilância permanente e a defesa intransigente dos valores democráticos. A liberdade nunca deve ser considerada um dado adquirido, mas uma conquista diária, ameaçada constantemente pela indiferença e pelo oportunismo.
Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus Autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.