PENSAMENTO PLURAL Crise dos opioides no Brasil: o alerta que não devemos ignorar, por Palmarí de Lucena
O escritor Palmarí de Lucena observa, em sua crônica, como a investigação “Mundo da Dor” alerta para o risco de uma crise de opioides no Brasil, similar à dos EUA, causada pela promoção agressiva de medicamentos como OxyContin pela Mundipharma. “Ignorando lições do passado, práticas perigosas são repetidas, enquanto os riscos de dependência e abuso seguem subestimados”, pontua. Confira íntegra…
A investigação “Mundo da Dor”, uma colaboração do Metrópoles com outros veículos internacionais, como The Examination e Der Spiegel, revela a repetição, no Brasil, de práticas que provocaram a crise dos opioides nos Estados Unidos. A farmacêutica Mundipharma, ao afirmar que a oxicodona de liberação prolongada não causa dependência, contradiz as evidências científicas. Especialistas alertam que o risco de o Brasil enfrentar uma crise semelhante está sendo subestimado.
Assim como ocorreu nos EUA, a Mundipharma organiza eventos para médicos, promovendo o uso de opioides no tratamento da dor, controlando o conteúdo discutido e custeando todas as despesas. Esse modelo, que teve consequências desastrosas nos Estados Unidos, está sendo replicado no Brasil, ignorando as lições do passado.
A Mundipharma distribui globalmente os medicamentos da Purdue Pharma, empresa controlada pela família Sackler, que desempenhou um papel central na crise dos opioides nos EUA. O OxyContin, cuja substância ativa é a oxicodona, é 150% mais potente que a morfina e tem um alto risco de dependência. Nos anos 1990 e 2000, a promoção agressiva desse medicamento resultou em uma epidemia que levou à morte de cerca de 90 mil pessoas por overdose.
A operação da Mundipharma no Brasil começou em 2013, pouco antes da Purdue enfrentar processos judiciais nos EUA. Em 2016, a Anvisa aprovou a comercialização do OxyContin, e as vendas de oxicodona aumentaram de 149,8 mil caixas em 2014 para 169,5 mil em 2016. Além do OxyContin, a empresa lançou o Restiva, um adesivo de buprenorfina, e o Targin, que combina oxicodona com naloxona.
Embora a empresa afirme que a naloxona reduz o risco de dependência no Targin, especialistas como Francisco Inácio Bastos, da Fiocruz, contestam essa afirmação. A experiência americana demonstra que medicamentos de liberação controlada, como o OxyContin, ainda são altamente suscetíveis ao abuso.
Em 2022, a Mundipharma lançou um vídeo promocional declarando que 2023 seria o “ano de Targin”, promovendo-o como uma versão segura do OxyContin. No entanto, o vídeo aborda o risco de dependência de forma superficial, dedicando apenas quatro segundos ao tema.
O Targin, assim como o OxyContin, é um comprimido de liberação lenta, projetado para evitar picos no sistema nervoso central e reduzir o risco de dependência. No entanto, um estudo de 2003 do Government Accountability Office dos EUA revelou que até mesmo a versão de liberação controlada do OxyContin contribuiu para a crise dos opioides.
Embora a Mundipharma argumente que a versão mais perigosa do OxyContin, de liberação rápida, nunca foi comercializada no Brasil, os paralelos entre as práticas nos dois países são claros. Assim como nos EUA, a segurança desses produtos continua a ser propagada, apesar dos riscos conhecidos.
A psiquiatra Mariana Campello, do Hospital das Clínicas da USP, observa que a oxicodona de liberação controlada, como encontrada no Targin e no OxyContin, ainda provoca abstinência nos pacientes. A oxicodona já é a terceira droga mais comum entre os dependentes atendidos no primeiro ambulatório público para tratamento de dependência de opioides no Brasil, inaugurado em 2024.
O abuso de opioides no Brasil é uma preocupação crescente. No entanto, os riscos associados aos produtos da Mundipharma parecem subestimados, repetindo o que ocorreu nos EUA. A falta de transparência e o marketing sedutor podem encobrir uma crise iminente.
O Brasil ainda tem a oportunidade de evitar uma epidemia de opioides semelhante à dos Estados Unidos, mas isso exige uma resposta imediata e responsável. Se não houver uma reavaliação das práticas médicas e comerciais, o país corre o risco de enfrentar sua própria crise de opioides, oculta pelas mesmas estratégias que devastaram comunidades nos EUA. Enquanto os lucros da farmacêutica são celebrados, a verdadeira questão é: quantas vidas estarão em risco se essa história se repetir?
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