PENSAMENTO PLURAL Da Lei RICO às “balas perdidas”: o abismo entre duas formas de combater o crime, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena lembra que, “enquanto os EUA combateram o crime organizado com inteligência e leis como a RICO, o Brasil insiste em operações espetaculares e letais”. No Rio, a guerra diária legítima abusos e serve de palanque a políticos sem experiência em segurança pública. O Congresso falhou em aprovar a PEC da Segurança, e a retórica de “narcoterrorismo” máscara violações civis, enquanto fronteiras frágeis e omissões perpetuam a violência e a impunidade institucional. Confira íntegra...

Enquanto os Estados Unidos, ao longo de um século, transformaram o combate ao crime organizado em uma engenharia de Estado, o Brasil — e em especial o Rio de Janeiro — ainda insiste em tratá-lo como uma guerra de extermínio, onde as vítimas se acumulam nas favelas e o inimigo é difuso, quase sempre o próprio cidadão pobre.

Nos anos 1930, J. Edgar Hoover construiu o FBI como um exército de burocratas da lei: agentes treinados em coleta de provas, perícias, escutas e infiltrações. Em vez de balas, usaram leis, investigações e tribunais. Décadas depois, a Lei RICO permitiria condenar chefes mafiosos sem que um único tiro fosse disparado. Os Estados Unidos aprenderam, a duras penas, que o crime organizado se combate com inteligência e método, não com heroísmo armado.

O Rio de Janeiro, por sua vez, parece aprisionado em uma narrativa de guerra infinita. A cada operação policial, repete-se o mesmo ritual: sirenes, helicópteros, ruas bloqueadas e corpos estendidos no asfalto. O Estado entra nas comunidades como quem invade território inimigo — e sai sem deixar instituições, escolas ou políticas sociais. É a vitória de um dia e o fracasso de uma década.

Essa assimetria brutal entre forças policiais fortemente armadas e grupos ou indivíduos suspeitos — muitos deles vinculados a milícias que operam sob a complacência política — revela a ausência de um projeto de segurança pública baseado em planejamento, controle e responsabilidade. O uso desmedido da força é frequentemente legitimado por discursos populistas e expressões de apoio parlamentar a operações militares espetaculares, encenadas como palcos eleitorais.

Pior ainda é quando a retórica do medo se transforma em instrumento legal: a invocação do termo “narcoterroristas” funciona muitas vezes como uma folha de parreira — esconde, justifica e naturaliza práticas que violariam direitos civis e que, de outro modo, deveriam ser investigadas. Esse rótulo serve para expandir poderes, amordaçar críticas e criar uma aura de exceção que facilita práticas extrajudiciais. Em vez de aproximar a justiça, essa linguagem protege agentes suspeitos de crimes, burla tentativas de responsabilização e corrói o escopo mínimo de garantias processuais que sustentam o Estado de Direito.

Não é coincidência que parte significativa desses parlamentares tenha ascendido politicamente na esteira da retórica da segurança pública, ainda que muitos sem experiência alguma em políticas públicas de segurança, sem formação técnica adequada ou trajetória que os habilite a compreender a complexidade do tema. Muitos exibem baixa patente militar ou formação acadêmica limitada, e sua visão sobre segurança pública raramente ultrapassa o repertório da truculência. Ainda assim, tornaram-se porta-vozes de um discurso punitivista, que simplifica problemas complexos em frases de efeito, alimentando a ilusão de que a violência estatal resolve o que a ausência do Estado produziu.

O aspecto eleitoreiro é evidente: quanto mais espetacular a operação, maior o capital político acumulado. A dor coletiva é convertida em palanque. O Congresso, refém de cálculos partidários e da retórica da força, fracassou em aprovar a PEC da Segurança Pública, proposta em 2021 para unificar protocolos, qualificar agentes e criar mecanismos de controle civil e integração entre forças. Preferiu-se o aplauso imediato à construção de uma política de Estado.

Embora novas políticas de Donald Trump advoguem um conceito de metralhadoras contra mosquitos no Caribe ou no Pacífico — e alguns securocratas brasileiros ainda acalentem fantasias de ataques de forças americanas a operações de tráfico de drogas no Brasil —, o fato é que as armas usadas por traficantes têm origem, em grande parte, no próprio país. Nossas fronteiras continuam porosas e sem vigilância adequada, e as operações que de fato seguem o dinheiro — o verdadeiro nervo do crime — restringem-se quase exclusivamente à Polícia Federal, isolada em sua competência e em seus limites institucionais.

Enquanto o FBI e o Departamento de Justiça norte-americano aprenderam a agir de modo coordenado, com foco em provas, rastreamento financeiro e redes de influência, o Rio persiste na retórica da guerra santa. Em vez de uma política pública de Estado, temos uma sucessão de operações pirotécnicas, onde o ruído das armas substitui o silêncio da investigação.

Os americanos compreenderam que o crime organizado não se destrói com tanques, mas com leis que atingem o bolso e o poder econômico. Já o Brasil ainda confunde violência com eficiência. A cada operação, repetimos o mesmo ciclo: a morte de suspeitos, o lamento dos inocentes e o aplauso de políticos que transformam a dor em palanque.

A lição americana não está na imitação, mas na mudança de paradigma: o combate ao crime não é guerra; é política pública. Exige Estado forte, leis consistentes, ministérios integrados e respeito aos direitos humanos. No Brasil, essa ideia ainda soa subversiva, quase ingênua — como se o verdadeiro inimigo fosse quem defende a razão.

Enquanto persistir o mito da “bala salvadora”, continuaremos confundindo força com violência e justiça com vingança. E o morro, que deveria ser parte da cidade, seguirá sendo tratado como campo de batalha — e a democracia, como uma vítima colateral.

 

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