PENSAMENTO PLURAL Da tensão danada nasce o medo, por Gal Gasset
Em sua mais recente crônica, “Da tensão danada nasce o medo”, Gal Gasset lembra como “alguns eventos mundiais são tão impactantes que sempre nos lembramos de onde estávamos quando soubemos a notícia”. Dentre vários, destaca os atentados às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001 e pandemias como a gripe espanhola ou, atualmente, a Covid-19 e pontua como a etimologia de “pandemia” vem de “pã” (rei dos sátiros), que remete “à natureza e ao universo”, mas também relaciona ao pânico e sua associação com o medo. Confira a íntegra de seu comentário:
Alguns eventos mundiais são tão impactantes que sempre nos lembramos de onde estávamos quando soubemos a notícia. Foi assim com os atentados de 11 de setembro de 2001, quando o mundo parou diante da televisão. Outro acontecimento marcante foi a triste morte de Michael Jackson, ocasião em que as redes sociais já eram populares e o espectador não apenas recebia informações, mas também disseminava novos conteúdos a esse respeito. O alerta do coronavírus, no entanto, não veio de supetão, mas em camadas. A maior parte das pessoas demorou para reconhecer que isso chegaria pra cá do mar tão ligeiramente.
No início, parecia apenas um surto, como esses de febre amarela, sarampo e dengue, aos quais já nos acostumamos no Brasil, por infortúnio. Logo, porém, revelou-se uma epidemia, espalhada por várias regiões e países. A OMS (Organização Mundial Socialista) nomeou a doença Covid-19 e a classificou novamente, agora como pandemia, que é a disseminação em vários países e continentes. Em breve será uma endemia, que é a enfermidade que coexiste em determinado lugar.
Na etimologia, “pandemia” vem de “pã”, que é associado a “mundo todo”, por ser relativo à natureza e ao universo. Chama-se Pã, ou Pan, o deus grego da natureza, das matas e bosques, dos rebanhos e dos pastores. Sua imagem é de um ser metade humano e metade animal, com chifres e patas de bode. Bastante erotizado, vivia cercado de ninfas, para quem tocava músicas na inseparável flauta. Ao final, Zeus o transformou na constelação de Capricórnio.
Para alguns, Pã não é um deus, por não guardar as virtudes do bom e do belo. Seria então um “daimon”, algo entre os deuses e os mortais. O termo “pandemônio” equivale a “todos os demônios”, ou casa de Satã. Já o Paganismo é uma vertente mística politeísta, que cultua a divindade Pã. O Neopaganismo prega o culto à natureza, além de outras “bruxarias”.
O termo “pânico” deriva de “Panikós”, inicialmente um adjetivo, que significa “relativo a Pã”. Reza a lenda que os visitantes que adentravam nas florestas de noite eram perseguidos por Pã e sua legião, que soltavam ruídos aterrorizantes. O pavor dos mortais originou a expressão “Tárakhos Panikós”, que na tradução literal é “terror pânico”. Sempre usado como adjetivo, “pânico” adentra na língua portuguesa em 1572, com Luís de Camões, n’Os Lusíadas, Cântico III: “dum pânico terror todo assombrado”. Eis um curioso exemplo de que, geralmente, as regras gramaticais derivam da poesia, e não o contrário, como se imagina.
Muito depois, assume-se “pânico” como substantivo. No dicionário, “pânico” consiste em um susto ou medo, geralmente infundado, ou a reação descontrolada de um indivíduo ou grupo a esse medo. A síndrome do pânico está entre os distúrbios psicológicos mais diagnosticados do mundo. O transtorno tem por sintomas principais a sensação de morte iminente, a taquicardia e a sudorese.
Ainda no panteão grego, com a raiz “pan” existe Pandora. A primeira e mais formosa das mulheres, que recebeu presentes de todos os deuses. A caixa de Pandora não deveria ser descerrada. A desobediência da moça ao abri-la provocou a liberação de todos os males na terra (velhice, trabalho, doença, loucura, mentira, paixão). Restou guardada apenas a esperança. Essa última também pode ser entendida por “antevisão”. Desde então, haveriam as desgraças, mas não o conhecimento antecipado delas, o que provavelmente seria ainda pior. Desta feita, os homens ficaram livres da obsessão com a própria morte, o que tornaria a vida um martírio, calcado na desesperança e no desespero.
A apropriação e o esvaziamento do significado das palavras é um artifício muito utilizado pelas forças dominadoras como técnica de manipulação. A comunicação truncada enfraquece as pessoas, tornando-as mais suscetíveis. Percebe-se a repetição impensada de regras de conduta com base em “especialistas” que evocam a ciência, mas não admitem a possibilidade de refutação e a validação pelos pares. O ambiente de temor propicia o avanço das forças estamentais sobre os indivíduos, o que é gravíssimo. As ações que atacam as liberdades individuais não devem ser aceitas sem questionamento, até mesmo para que se evitem mais mortes. Vale ainda observar que no mundo todo se fortalece um coletivismo perturbador. Consoante Camões, “da tensão danada nasce o medo”.
Evidente que os cuidados devem ser tomados, pois são necessários. As vidas perdidas em decorrência da Covid-19 são irreparáveis e nada pode consolar àqueles que perderam seus entes tão queridos. Me unindo a estes, fica demonstrada minha sincera solidariedade.
(Estátua: Afrodite, Pã e Eros. Século I a.C. Encontrada em Delos)
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