O escritor Palmarí de Lucena lamenta que, entre (ex-deputado) Severino Cavalcanti e Hugo Motta, o Brasil pouco mudou. O Parlamento segue encastelado, protegido por um regimento que blinda privilégios e distancia o povo de seus representantes. A liturgia política virou mecanismo de autopreservação, e a democracia, espetáculo de bastidores. “Na Paraíba, o enredo se repete: velhas famílias com novas máscaras, mantendo o poder atrás das cortinas que o povo ainda não atravessou”, pontua. Confira íntegra…
Há uma sensação recorrente na política brasileira: o tempo passa, mas o sistema não se move. A sucessão de nomes que ocupam os cargos mais altos da Câmara dos Deputados parece apenas atualizar o elenco de uma velha peça. De Severino Cavalcanti a Hugo Motta, o que muda é o figurino; o enredo é o mesmo — um parlamento que se protege sob as cláusulas de um regimento interno concebido para servir mais aos seus membros do que à sociedade que o sustenta.
O Brasil vive aprisionado num ciclo de autodefesa institucional. A Câmara, que deveria ser a voz da sociedade, tornou-se um organismo fechado, regido por normas que garantem estabilidade e privilégios à casta política, enquanto a transparência e a renovação são vistas como ameaças. O regimento interno, apresentado como ferramenta de ordem, transformou-se em manual de sobrevivência para quem se perpetua no poder.
Esse sistema corporativista ergueu um muro entre o povo e seus representantes. O cidadão, que imagina a política como instrumento de mudança, descobre que ela funciona como fortaleza: sólida, opaca e impenetrável. A liturgia parlamentar virou ritual de exclusão. Por trás de cada artigo e inciso, esconde-se o medo de perder o controle das engrenagens que movem o poder — comissões, relatorias, cargos e, sobretudo, o acesso ao orçamento público.
O drama é antigo. Severino Cavalcanti, com seu populismo ingênuo e pragmático, simbolizava o clientelismo explícito dos anos 2000. Hugo Motta, duas décadas depois, encarna a versão tecnocrática e discreta dessa mesma herança — um parlamentar que domina o sistema e dele se beneficia, sem jamais confrontá-lo. Entre ambos, o país mudou, mas a Câmara permaneceu a mesma. Renovaram-se apenas os gestos, não os princípios.
As comissões continuam sendo feudos, as lideranças partidárias se revezam em acordos de conveniência e as pautas urgentes do país são deixadas à deriva. A política transformou-se num jogo de cadeiras em que o mérito é substituído pelo apadrinhamento. O eleitor, que deveria ser o juiz supremo desse processo, é reduzido a espectador, convocado apenas a cada quatro anos para legitimar a mesma engrenagem que o exclui.
Não é um problema de indivíduos, mas de cultura institucional. A Câmara tornou-se uma corporação, com ritos, códigos e blindagens. Seus membros, de diferentes partidos, acabam assimilando o mesmo instinto de autoproteção. O corporativismo político é um pacto de sobrevivência coletiva: quem rompe o silêncio ou desafia os privilégios, dificilmente resiste. É o preço da lealdade ao sistema.
Enquanto isso, o país real — o das escolas precárias, dos hospitais superlotados e da desigualdade persistente — fica à margem da agenda. Em Brasília, discute-se quem preside, quem relatora e quem controla a pauta, enquanto as urgências da população são tratadas como nota de rodapé. O Parlamento, que deveria ser o coração pulsante da democracia, tornou-se um órgão anestesiado, reagindo apenas quando o próprio corpo sente dor.
Na Paraíba, esse retrato nacional ganha escala doméstica. O Estado, fértil em lideranças históricas, assiste à mesma trama em miniatura: famílias que se revezam no poder, partidos que se adaptam conforme o vento, e um eleitorado que ainda confunde simpatia com representação. O coronelismo rural cedeu espaço ao mandonismo digital — mais moderno na forma, mas idêntico na essência.
O poder permanece concentrado em poucas mãos. Jovens que ingressam na política logo percebem que a regra é adaptar-se, não contestar. A ética, que deveria nortear o serviço público, cede à lógica da autopreservação. O Parlamento, nacional ou estadual, vive de costas para o povo, como um condomínio fechado de interesses.
O Brasil e a Paraíba não precisam de heróis isolados, mas de coragem coletiva para reescrever as regras do jogo. É urgente romper o pacto tácito da autodefesa e devolver à política seu propósito original: servir ao bem comum. Isso exige abrir o regimento, expor os bastidores e convidar a sociedade a atravessar as cortinas.
A democracia não se mede pelos aplausos dentro do plenário, mas pelo ruído das ruas que a sustentam. Enquanto nossos representantes permanecerem escondidos atrás de cortinas de veludo, o povo continuará do lado de fora — esperando o dia em que a Casa do Povo volte a ser, de fato, do povo.
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