Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena observa como as democracias não morrem de súbito, mas apodrecem pela apatia e pela memória curta dos eleitores. No Brasil, prefeitos e vereadores transformam mandatos em refúgios, trocando cargos e favores com milícias que dominam currais eleitorais. A Operação Carbono Oculto, em São Paulo, expôs a simbiose entre política e crime organizado. “Quando corruptos e incompetentes são endeusados nas urnas, a democracia deixa de ser escolha livre e torna-se fachada”, reforça. Confira íntegra…
As democracias não costumam ruir de repente; vão se corroendo lentamente, como madeira exposta à umidade, até que cedem em silêncio. O que as enfraquece não é apenas a audácia dos que flertam com o autoritarismo, mas também a apatia de uma cidadania que, cansada ou desencantada, prefere esquecer em vez de vigiar. Nesse vazio de memória e cobrança, líderes acusados de crimes comuns ou até de conspiração contra a ordem encontram espaço para se recompor, retornando ao poder como se o passado pudesse ser apagado a cada eleição.
No Brasil, essa fragilidade se soma ao avanço do crime organizado. No Rio de Janeiro, milícias já não se limitam à violência armada: controlam territórios, exploram serviços básicos, erguem igrejas de fachada, ONGs e entidades de caridade que funcionam como canais de lavagem de dinheiro e cabos eleitorais disfarçados. No México, os cartéis atravessaram décadas infiltrando-se em todos os níveis de poder, convertendo a política em instrumento de sua própria sobrevivência. E a recente Operação Carbono Oculto, em São Paulo, que revelou um esquema bilionário de lavagem de dinheiro ligado ao PCC e a redes empresariais e financeiras, mostrou como essas organizações avançam sobre o coração da economia formal, corroendo a fronteira entre legalidade e crime.
Ao mesmo tempo, parte do Legislativo brasileiro discute emendas constitucionais que ampliariam a imunidade parlamentar, criando na prática uma blindagem contra processos por crimes comuns. Mandatos que deveriam ser instrumentos de serviço público transformam-se em refúgios dourados, usados como escudos por políticos sob investigação ou já condenados. Em muitos municípios, prefeitos e vereadores perpetuam-se no poder por meio de alianças com grupos criminosos que controlam currais eleitorais, trocando cargos e favores pela garantia de votos. Assim, a política local deixa de ser espaço de representação democrática e converte-se em extensão de interesses privados e ilícitos.
Nesse contexto, até iniciativas que buscam valorizar o trabalho parlamentar correm o risco de reforçar distorções. Relatórios como os do Congresso em Foco, ao medir “atuação” pelo número de requerimentos apresentados ou pela simples presença em plenário, podem acabar valorizando não apenas políticos implicados em corrupção, mas também os incompetentes. E a incompetência, quando endeusada pelo voto, torna-se tão corrosiva quanto a desonestidade, porque degrada a política ao transformá-la em um palco de formalidades sem substância, onde o que importa não é a qualidade, mas a quantidade.
A questão, afinal, não se resume ao comportamento dos poderosos. Há um dilema ético que recai sobre a própria cidadania. Até que ponto o eleitor pode se eximir de responsabilidade quando, por apatia ou conveniência, reconduz ao poder figuras que traem o interesse público ou negociam com facções criminosas? Ao aceitar pequenos favores em troca de votos, legitima-se um sistema de privilégios e impunidades. Rousseau lembrava que a soberania só se sustenta quando a memória coletiva é preservada; Montesquieu advertia que apenas o poder limita o poder; e Tocqueville via na indiferença das maiorias a semente da tirania.
O Brasil, como o México, encontra-se diante de uma encruzilhada histórica. Se o esquecimento social e a busca de blindagem prevalecerem, corremos o risco de transformar a democracia em uma fachada: um ritual de urnas em que o povo já não escolhe, mas apenas chancela acordos feitos entre elites políticas e organizações criminosas. A defesa da República exige mais que discursos solenes; requer memória ativa, coragem ética e cidadãos dispostos a vigiar e cobrar, para que a lei não seja capturada pelo poder, mas para que o poder se mantenha cativo da lei.
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