A política externa dos EUA combina discurso de defesa dos direitos humanos com alianças estratégicas a regimes autoritários, afirma o escritor Palmarí de Lucena em seu comentário. “Sob Trump, tarifas foram usadas como instrumento de coerção política, punindo adversários e poupando aliados e ssa seletividade corrói a credibilidade moral americana, transforma o comércio em moeda de troca e ameaça princípios democráticos ao submeter a diplomacia a interesses de conveniência”, diz ainda. Confira íntegra...
A política externa dos Estados Unidos revela uma contradição histórica: ao mesmo tempo em que se apresenta como guardião global dos direitos humanos, Washington mantém, protege e até fortalece alianças com regimes que desrespeitam sistematicamente liberdades civis, o devido processo legal e a dignidade humana. Essa seletividade não é fruto de desconhecimento — as evidências são fartamente documentadas —, mas de uma calculada priorização de interesses geopolíticos e comerciais.
Durante a Guerra Fria, essa lógica se manifestou no apoio a ditaduras militares no Brasil, Chile e Argentina, sob a justificativa de conter o comunismo, mesmo diante de torturas, desaparecimentos e censura. Padrão similar ocorreu com o Irã do xá Reza Pahlavi e, até hoje, com a Arábia Saudita, blindada contra críticas apesar de severas restrições às liberdades civis e direitos das mulheres. No presente, a lista inclui países como Egito e Israel, cujas práticas autoritárias e acusações de violações a civis são sistematicamente minimizadas ou neutralizadas pela proteção diplomática norte-americana.
Esse duplo padrão ganhou contornos ainda mais visíveis na gestão de Donald Trump, que elevou tarifas para 50% sobre produtos do Brasil e da Índia — alegando punir a compra de petróleo russo ou, no caso brasileiro, retaliar um processo no Supremo Tribunal Federal contra Jair Bolsonaro, seu aliado político. Trata-se de um uso das tarifas não apenas para proteger indústrias internas, mas como instrumento de coerção política, buscando influenciar decisões em campos alheios ao comércio.
Historicamente, presidentes americanos já usaram tarifas por razões políticas, mas a intensidade e abrangência sob Trump não têm precedentes. A lógica é simples, mas controversa: reduzir a competitividade de bens estrangeiros no mercado americano para forçar mudanças de comportamento. A prática aproxima as tarifas de sanções econômicas tradicionais, porém com menor alcance, já que os países afetados podem buscar outros mercados.
Há riscos evidentes. Primeiro, as tarifas acabam sendo pagas por empresas e consumidores americanos, gerando pressão inflacionária interna. Segundo, deterioram relações com parceiros estratégicos, como Índia e Brasil, que têm reagido de forma desafiadora. Terceiro, consolidam a percepção de que os EUA instrumentalizam o comércio para resolver disputas políticas, corroendo a previsibilidade das relações econômicas e a credibilidade moral do país.
No caso brasileiro, a tentativa de vincular a redução de tarifas a um processo judicial contra Bolsonaro é um precedente perigoso, pois implica interferência indireta em outro sistema judicial soberano. Esse tipo de coerção, travestida de diplomacia, fragiliza princípios de independência e respeito institucional — o mesmo respeito que Washington alega defender em seu discurso global.
Essa política seletiva também se expressa na aplicação assimétrica de sanções e barreiras: punições rápidas a governos adversários e complacência com aliados que protagonizam retrocessos democráticos ou tentativas de golpe. Na prática, direitos humanos e democracia tornam-se moeda de troca, utilizados para premiar lealdades e punir dissidências.
Ao apostar repetidamente em tarifas como “arma de guerra econômica”, os EUA correm o risco de transformar seu mercado — que Trump descreve como “a loja mais bonita do mundo” — em um balcão de negociações políticas de alto custo e eficácia duvidosa. Enquanto não houver coerência entre discurso e prática, Washington seguirá sendo visto menos como líder ético e mais como árbitro parcial, disposto a relativizar abusos quando isso servir a seus interesses estratégicos.
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