PENSAMENTO PLURAL Direitos Humanos: do bode expiatório ao escudo de luxo, por Palmarí de Lucena

Para o escritor Palmarí de Lucena, “transformados em palavrão, os direitos humanos viraram cortina de fumaça para esconder sucateamento e desvio”. Mas, quando a Justiça fecha o cerco, quem gritava “esterco de bandido” atravessa o Atlântico com liminar na mão e súplica na garganta. “O bode expiatório converte-se em salva-vidas de luxo e sem garantias, naufragamos todos—inclusive os falsos paladinos que pilotam o pânico como negócio eleitoral”, pontua. Confira íntegra…

A extrema-direita brasileira aperfeiçoou uma coreografia singela, mas devastadora: transformar direitos humanos em palavrão enquanto os utiliza como colete à prova de bala quando a Justiça se aproxima. Primeiro vem o susto. Lives, discursos e memes repetem que garantias constitucionais seriam “escudo de bandido” e travariam a “boa polícia”. Cansado da violência, o cidadão passa a confundir remédio com doença: se há assalto na esquina, dizem eles, é porque sobra direito — nunca porque falta escola, iluminação, investigação ou salário digno para quem patrulha. O vilão torna-se fácil e abstrato: não o traficante armado, mas a ONG incômoda, o defensor público, o professor que insiste em ensinar cidadania. O medo, então, cobre o cenário político como neblina, ocultando desvio de verbas, sucateamento de serviços e acordos espúrios.

Chega o segundo ato, e a encenação dá meia-volta. A mesma turma que chamava habeas corpus de “excesso de garantismo” corre ao Supremo em busca de liminar. Quem zombava de tratados internacionais cita a Convenção Americana de Direitos Humanos como se fosse dogma sagrado. Se a toga aperta demais, há sempre um voo para Miami ou Lisboa, onde o recém-convertido grava vídeos entre palmeiras denunciando “perseguição política”. O político que estraçalhou a placa de Marielle clama por devido processo; o influencer que exaltava torturadores exige presunção de inocência. Direitos rebaixados a esterco convertem-se em salva-vidas de luxo, acessível apenas a quem tem sobrenome vistoso, gabinete e seguidores.

Essa ginástica moral corrói fundamentos do Estado de Direito. Sentenças passam a valer apenas quando absolvem “os nossos”, e o debate público derrete em slogans de torcida. A polícia aprende que certas vidas valem menos; o juiz, que certos réus merecem rédeas frouxas; o eleitor, exposto a notícias que misturam pânico com indignação seletiva, oscila entre idas e vindas emocionais. Enquanto isso, os que de fato precisam de proteção — jovens negros parados em blitz, mães que choram desaparecidos, comunidades ameaçadas pela grilagem — seguem sem voz nem escudo.

Mais grave ainda é a fuga para o exterior acompanhada de campanhas digitais contra as mesmas instituições que antes juraram defender. No conforto de nações que respeitam o Estado de Direito que eles próprios tentaram corroer, declaram-se mártires, pedem asilo e fomentam desinformação que mina a soberania democrática. A retórica da “defesa da pátria” revela-se farsa quando serve apenas para desestabilizar o próprio país.

O problema da violência urbana é real, mas a suspensão de direitos jamais será solução. Pelo contrário: combate-se o medo ampliando garantias, não reduzindo-as. É preciso escola funcionando, polícia treinada e remunerada, justiça célere, políticas sociais que interrompam o ciclo da exclusão. Usar direitos humanos como bode expiatório é erro técnico, ético e histórico — passo largo rumo a um Brasil mais brutal e menos justo.

Direitos humanos não são moeda de temporada; são cinturão de segurança para todos. Protegem o empresário acusado, o jovem na periferia, a ativista ambiental e o policial disciplinado. Abandoná-los porque enlouquece a timeline é armar o futuro contra nós mesmos. Quando o pânico passar — e ele sempre passa — ficará claro que só sociedades que preservam garantias universais atravessam tempestades sem naufragar.

 

Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.