PENSAMENTO PLURAL Domínio sem mandato, por Palmarí de Lucena

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O texto do escritor Palmarí de Lucena analisa a transição do imperialismo energético para o digital, mostrando como Big Techs exercem poder extraterritorial sobre o Sul Global. “Sob o pretexto da liberdade, moldam comportamentos, desestabilizam democracias e escapam de qualquer controle público”, pontua. Um domínio sem exército, sem bandeira, mas eficaz — onde o progresso prometido pode se tornar instrumento sutil de sujeição. Confira íntegra…

Por muito tempo, o barulho dos tanques e o ranger das torres de perfuração marcaram o compasso do imperialismo moderno. Grandes corporações energéticas, respaldadas por interesses geopolíticos, fincaram raízes em desertos e selvas, muitas vezes sob a justificativa de levar progresso, estabilidade e desenvolvimento. Onde havia petróleo, surgia também um contrato desigual, um porto estratégico e, quando necessário, uma reconfiguração política sob a lógica dos interesses globais.

Esse modelo direto e territorial passou por metamorfose. Hoje, o extrativismo é silencioso. Os novos impérios não perfuram o solo, mas os corpos digitais. Com termos de uso que excedem muitas constituições em extensão — e opacidade —, as grandes empresas de tecnologia não impõem governos: moldam comportamentos. Não derrubam presidentes: reescrevem algoritmos. E não fincam bandeiras: instalam servidores. No lugar de soldados, temos plataformas. No lugar de fronteiras, temos termos de serviço.

Apesar das transformações, a essência se preserva: a atuação extraterritorial, insensível às legislações locais e frequentemente blindada contra responsabilização real. Nos países do Sul Global, a lógica se repete. Ontem, poços de petróleo e promessas que evaporavam junto ao gás. Hoje, dados pessoais, hábitos de consumo, localização e até emoções — tudo coletado com fluidez jurídica, sem retorno proporcional em impostos, infraestrutura ou soberania tecnológica.

As consequências ultrapassam o campo econômico. Afetam a cultura, o debate público e o processo democrático. No passado, a dependência se dava pelo preço do barril e pelas decisões estratégicas tomadas a milhares de quilômetros. Hoje, os mesmos Estados nacionais se veem subordinados a regras privadas, definidas em idiomas estrangeiros, e a mecanismos invisíveis que filtram o que se vê, o que se lê — e até o que se crê.

Acrescenta-se a isso um fenômeno ainda mais perturbador: o surgimento de grupos autônomos, muitas vezes identificados como defensores da liberdade ou da ordem, que se organizam em ecossistemas digitais sem controle público efetivo. Espalham desinformação com velocidade algorítmica, deslegitimam instituições com memes e slogans, e atuam como quintas-colunas digitais — nem sempre conscientes de seu papel, mas eficazes na desestabilização do espaço cívico. As plataformas, ao adotarem posturas neutras ou meramente técnicas, acabam por se tornar vetores — intencionais ou não — dessa erosão.

O discurso da liberdade permanece como principal escudo. Liberdade de expressão, de escolha, de acesso à informação. No entanto, raramente se discute quem controla essas liberdades, quem lucra com elas e quem perde quando algoritmos substituem instituições, e cliques, a reflexão.

No fim, o cenário é menos espetacular, mas mais insidioso: um domínio exercido sem mandato, sem território e sem rosto. O petróleo, ao menos, deixava rastros visíveis no chão. O poder digital, em contraste, escorre das telas com a fluidez da promessa — e instala-se sem pedir permissão. Para os países do Sul Global, a tecnologia que chegou como símbolo de emancipação pode, sem vigilância, converter-se em ferramenta de sujeição. E o progresso, mais uma vez, corre o risco de ser uma estrada pavimentada para fora.

 

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