O artigo do escritor Palmarí de Lucena reflete sobre a crise moral do patriotismo nos Estados Unidos e no Brasil. Inspirado em George Packer, o autor defende um “patriotismo de consciência”, que substitua a idolatria das bandeiras pelo compromisso ético com o bem público. Dialogando com Lilia Moritz Schwarcz, conclui que a verdadeira decência nacional nasce da coragem de olhar o país no espelho — e ainda assim acreditar nele. Confira íntegra...
George Packer — jornalista, ensaísta e colaborador da revista The Atlantic, vencedor do National Book Award por The Unwinding: An Inner History of the New America — escreveu recentemente que ser patriota, na América de Donald Trump, é como assistir ao julgamento de um ente querido acusado de um crime hediondo: a vergonha disputa espaço com o amor. Essa metáfora serve também ao Brasil, onde o verde e o amarelo foram sequestrados por paixões partidárias, e o amor à pátria passou a ser confundido com a devoção a um líder ou com o ódio ao adversário.
A crise de sentido do patriotismo não é um fenômeno americano, mas civilizacional. Tocqueville via, no século XIX, que a lealdade democrática nascia do exercício da cidadania — não do sangue, nem da terra, mas da crença em direitos iguais e no governo consentido pelos governados. Abraham Lincoln traduziu essa fé no discurso de Gettysburg, lembrando que a liberdade exige a ação contínua dos cidadãos, não a reverência aos mortos. No entanto, dois séculos depois, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, esse patriotismo de reflexão foi substituído por slogans e ressentimentos.
A direita, em sua vertente mais populista, transformou o amor à nação em exclusão. “América para os americanos”, diz a retórica de Trump, ecoando os antigos nacionalismos de sangue e solo. No Brasil, a frase muda o idioma, mas não o espírito: “o país dos patriotas” é um círculo fechado, onde a fé política vale mais que a Constituição. Já a esquerda, muitas vezes, reage com o mesmo erro inverso — rejeitando símbolos nacionais por considerá-los contaminados por militarismo, racismo ou autoritarismo. De um lado, idolatria; do outro, repulsa. E entre ambos, o vazio moral.
O resultado é a perda de um amor lúcido pelo país. Nos Estados Unidos, Packer lamenta que republicanos amem a bandeira enquanto corroem as instituições, e que democratas só se orgulhem da pátria quando governam. No Brasil, há quem aplauda o país apenas quando o poder lhe é favorável, e o despreze quando não é. Esse patriotismo condicional revela que deixamos de ver a democracia como casa comum — ela virou propriedade temporária de quem grita mais alto.
Precisamos recuperar o que o filósofo John Dewey chamava de “religião cívica”: a crença de que a pátria não é um dogma, mas um projeto inacabado. O verdadeiro patriotismo não mora nos desfiles, nem nas redes sociais, mas no compromisso com o bem público, no respeito às leis, na decência no trato político e na solidariedade com os que pensam diferente. Ser patriota é querer que o país seja justo até com quem discorda de nós.
Whitman via na América um cântico à humanidade. O Brasil, com sua diversidade étnica e cultural, poderia ser um coro semelhante, se não insistisse em dividir-se entre “nós” e “eles”. Amar o país é olhar para ele como para um espelho: ver suas imperfeições sem quebrá-lo, acreditar na beleza possível mesmo quando o reflexo nos envergonha.
Em tempos de cinismo, acreditar na decência nacional é um ato de fé e resistência. Não precisamos de um patriotismo de bandeiras, mas de um patriotismo de consciência — o que se pratica no cotidiano, nas urnas, nas escolas, nas ruas. É esse amor silencioso, não o ruidoso, que poderá salvar tanto a América quanto o Brasil de si mesmos.
Entre Packer e o Brasil, há uma ponte de pensamento que passa por Lilia Moritz Schwarcz, autora de Sobre o Autoritarismo Brasileiro. Como Packer, ela examina as fissuras morais da nação sem ceder à amargura. Ambos partilham a crença de que o amor à pátria só tem sentido quando se confronta com seus próprios fantasmas. A decência de um país — seja ele americano ou brasileiro — mede-se não pelo tamanho de suas bandeiras, mas pela coragem de olhar o espelho e não desviar os olhos.
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