Em seu comentário deste domingo, o escritor Palmarí de Lucena discorre como, diante da primeira Bíblia impressa, no Museu de Gutenberg em Mainz, nasceu a reflexão sobre o destino da palavra. No século XV, a prensa abriu horizontes de saber, mas também ergueu fogueiras de intolerância. Hoje, a internet e a inteligência artificial ecoam esse paradoxo em escala planetária. “Cabe à consciência humana decidir: fazer da palavra chama que ilumina caminhos de liberdade ou permitir que ela se torne sombra que nos perde”, reflete. Confira íntegra...
Minha visita ao Museu de Gutenberg, em Mainz, provocou mais que admiração histórica: despertou um paralelo inevitável com o presente. Diante das prensas originais, compreendi que o gesto de multiplicar palavras em papel não foi apenas um feito técnico, mas o início de uma era em que o conhecimento se libertou das amarras da escassez. Aquela invenção não só acelerou o ritmo das ideias, como remodelou a vida em sociedade, abrindo portas para a modernidade.
O fascínio, contudo, não elimina as sombras. A prensa serviu tanto para difundir saberes quanto para espalhar medos. Livros e folhetos iluminaram consciências, mas também alimentaram perseguições religiosas, fomentaram intolerâncias e ajudaram a erguer fogueiras da Inquisição. A palavra impressa, capaz de educar e inspirar, mostrou-se igualmente apta a deformar e condenar. Era a prova de que cada salto tecnológico carrega consigo a ambivalência humana.
Séculos depois, a internet e a inteligência artificial repetem esse dilema em proporções avassaladoras. O que antes demandava oficinas, tipógrafos e papel, hoje se propaga em segundos, em múltiplas línguas, atravessando fronteiras invisíveis. O impacto é imediato: a mesma rede que amplia vozes silenciadas e conecta culturas também multiplica boatos, extremismos e ilusões fabricadas. Se a superstição viajava em panfletos, agora se dissemina em ondas digitais, com a força de imagens, vídeos e textos criados por algoritmos que imitam a verdade com inquietante perfeição.
Os estilos de propagação de ideias, então e agora, guardam semelhanças e diferenças decisivas. No século XV, a difusão era lenta, dependia de tiragens limitadas e atingia comunidades restritas. Ainda assim, foi suficiente para desencadear reformas religiosas, revoluções políticas e o florescimento do pensamento científico. Hoje, vivemos em meio a uma torrente ininterrupta de informações: em vez de poucas páginas que transformavam gerações, temos um excesso que, muitas vezes, confunde mais do que esclarece. O impacto também se inverte: se antes era o privilégio do acesso que moldava o poder, hoje é a capacidade de filtrar e discernir que define a verdadeira liberdade.
Não se trata de demonizar instrumentos. Gutenberg não é responsável pela caça às bruxas, assim como a internet e a inteligência artificial não podem ser culpadas, por si só, pelo envenenamento do debate público. O problema está em como as sociedades utilizam essas ferramentas, quais limites éticos estabelecem e que tipo de cultura constroem a partir delas.
O desafio é transformar a abundância de informação em espaço de clareza e reflexão, e não em ruído. Para isso, precisamos fortalecer a educação, cultivar o senso crítico e estimular valores de responsabilidade coletiva. A história mostra que nenhuma invenção é neutra: tanto pode abrir caminhos de liberdade quanto consolidar novas formas de opressão.
Ao deixar Mainz, ficou-me a lembrança do nicho onde repousa a primeira Bíblia impressa: não apenas um livro, mas um relicário da palavra. Como no século XV, o futuro não dependerá da engenhosidade das máquinas, mas da clareza da consciência humana — capaz de transformar a palavra em chama de luz ou em sombra que nos perde.
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