O Brasil vive sob o vício do primeiro lugar: vencer é visto como prova de valor, perder como sentença de inutilidade, afirma o escritor Palmarí de Lucena, em seu comentário. Esse impulso, disfarçado no mito da malandragem, segundo o autor, normaliza a esperteza como virtude. Mas a vida, como lembram Darwin, Kipling, Henley e Melville, não é guerra sem fim: triunfos e derrotas são passageiros. “O essencial é adaptar-se, recomeçar e preservar a dignidade, sem confundir grandeza com medalhas ou atalhos”, acrescenta. Confira íntegra…
Há um traço persistente na vida brasileira: a inconformidade diante da derrota e a obsessão pelo “primeiro lugar”. Seja no concurso público, na disputa por um cargo, na eleição ou até na pressa nervosa do trânsito, repete-se a lógica de que só existe dignidade na vitória. Quem vence, celebra; quem perde não apenas se frustra — sente-se apagado, como se a derrota fosse sentença de inutilidade. Até o simples desejo de ser “convidado” para um evento, ocupar um “cargo de confiança” ou integrar uma mesa de honra costuma ser confundido com um atestado de valor.
O mito da malandragem, tão enraizado na cultura nacional, talvez seja uma das expressões mais nítidas desse vício do primeiro lugar. Celebrado em sambas, anedotas e novelas, o malandro é visto como aquele que “sai na frente” não pelo esforço, mas pela esperteza. Ludibriar, enganar, driblar uma regra ou escapar de uma obrigação acaba sendo tratado como virtude nacional, quando, na prática, é apenas outra forma de afirmar-se superior ao próximo, custe o que custar.
Esse culto à esperteza não é inofensivo: reforça a lógica de que o mérito está em levar vantagem, legitimando, na política, a ideia de que “quem pode mais levar mais” e, no cotidiano, normalizando pequenos atos de transgressão que corroem a confiança pública. Assim, o primeiro-lugarismo brasileiro, disfarçado de malandragem, mina a própria noção de comunidade.
Esse impulso, no entanto, não é exclusivo. A cultura universal está repleta de vozes que alertam contra a idolatria do triunfo. Rudyard Kipling, em seu poema Se—, aconselhava: “Se és capaz de encarar o Triunfo e a Derrota e tratar esses dois impostores da mesma maneira…”. William Ernest Henley, em Invictus, mesmo diante da adversidade, proclamava-se “o capitão da minha alma”, recusando-se a entregar sua liberdade interior ao destino. Ambos, cada qual a seu modo, sugerem que o sucesso não deve embriagar, nem o fracasso condenar. São estados passageiros, incapazes de definir sozinhos o valor de uma vida.
Herman Melville, em Moby Dick, acrescenta outra chave de leitura. O capitão Ahab, consumido pela ânsia de vencer a qualquer custo, transforma a caça à baleia branca em uma cruzada pessoal. Sua vitória, caso viesse, seria destrutiva; sua derrota, inevitável. O romance é metáfora do risco que se corre quando a obsessão pelo triunfo absoluto se converte em tragédia.
Essa mentalidade, tantas vezes, espelha-se na vida prática. A vitória eleitoral, por exemplo, pode ser confundida com salvo-conduto para impor vontades sem limites, enquanto a derrota é tomada como deslegitimação total. A lógica tribal, alimentada por rótulos simplistas — “inimigo”, “traidor”, “vendido” —, empobrece o debate e bloqueia a construção de consensos. No cotidiano, a mesma postura se repete em escala menor: o motorista que avança o sinal para “não ficar para trás”, o torcedor que não suporta o revés e converte arquibancadas em campos de batalha. A violência, nesses casos, nasce do inconformismo.
Contra essa visão, a lição de Darwin permanece atual: sobrevive não o mais forte, mas o mais adaptável. A vida não é campeonato de vencedores solitários, mas processo contínuo de ajustes e reinvenções. O candidato que não passa em um concurso pode descobrir talento para empreender. O time que perde hoje volta ao campo amanhã, reinventado. A derrota não encerra trajetórias, pode até fertilizá-las.
Talvez esteja aí a vitória mais necessária: superar o vício do primeiro-lugarismo que contamina tanto a vida pública quanto as relações privadas, aprendendo a conviver com o revezamento natural entre ganhos e perdas. Só assim será possível escapar da lógica de Ahab e do culto estéril à conquista imediata. Porque, em última instância, como lembrava Henley, o verdadeiro triunfo não está em erguer medalhas ou colecionar convites, mas em permanecer “senhor de nosso destino, capitão de nossa alma” — capazes de atravessar o mar revolto da vida sem confundir dignidade com o efêmero brilho das vitórias.
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