O comentário do escritor Palmarí de Lucena exalta o compromisso constitucional das Forças Armadas, destacando que a farda não serve a indivíduos, mas à lei e à democracia. Palmarí cita exemplos dos comandantes brasileiros Tomás Paiva e Marcelo Damasceno, e do general americano Mark Milley, que rejeitaram aventuras golpistas ou a politização das Forças Armadas. “A verdadeira força militar reside na lealdade à Constituição, não na submissão a projetos autoritários”, reforça o escritor. Confira íntegra…
Há nas instituições militares um tipo de silêncio que não é ausência de voz, mas presença de ordem. Um silêncio que ecoa nos pátios das academias, no compasso das marchas e nos gestos que moldam não apenas o corpo, mas o caráter de quem se dispõe a servir. Ali, forma-se o chamado “espírito militar” — uma identidade que nasce não apenas da obediência, mas da internalização de valores como honra, disciplina e compromisso com o bem comum.
No livro O Espírito Militar, o antropólogo Celso Castro descreve esse processo de formação que transforma civis em soldados. Mais do que instrução técnica, o que se aprende na caserna é uma forma de existir: o militar não pertence apenas a si mesmo. Ele representa um ideal, uma estrutura, uma missão que ultrapassa vontades pessoais ou interesses circunstanciais.
Mas esse mesmo espírito é, de tempos em tempos, posto à prova. Especialmente quando forças externas tentam capturar as instituições armadas para finalidades alheias ao interesse público. Em democracias — sejam consolidadas ou em construção — não faltam tentativas de usar o prestígio das Forças Armadas como escudo para ambições autoritárias.
No Brasil, a recente recusa dos comandantes do Exército, general Tomás Paiva, e da Aeronáutica, brigadeiro Marcelo Damasceno, em aderir a qualquer proposta de ruptura institucional foi firme, inequívoca e pedagógica. Não se trata de gesto político, mas de fidelidade ao papel que cabe às Forças Armadas numa República: garantir a soberania, a paz interna e a legalidade — nunca a ruptura, nunca o desvio.
Esse mesmo compromisso pôde ser visto nos Estados Unidos. O general Mark Milley, então chefe do Estado-Maior Conjunto, recusou-se a participar de qualquer iniciativa que pudesse sugerir interferência militar em disputas eleitorais ou aventuras golpistas. Em palavras diretas, lembrou: “Nós juramos lealdade à Constituição dos Estados Unidos, e não a um indivíduo.” Foi um lembrete de que a farda serve à lei, e não ao poder.
Há, porém, um detalhe que escapa à superficialidade dos discursos inflamados: a verdadeira força de um soldado não está na arma que carrega, mas na lucidez com que compreende seus limites e deveres. Nesse ponto, talvez valha recordar a ironia do “bom soldado Švejk”, que, com aparente ingenuidade, desafiava a lógica absurda das ordens irracionais. Sua força estava na crítica silenciosa que, sem transgredir abertamente, expunha o ridículo das pretensões autoritárias.
Soldados conscientes sabem que há ordens que se cumprem e princípios que se preservam. E sabem também que a fidelidade maior não é ao chefe da vez, mas à legalidade permanente. A linha que separa o militar do miliciano é traçada exatamente aí: no compromisso com a Constituição e na recusa a ser instrumento de interesses pessoais.
Em tempos de tensão, quando as instituições são testadas, o exemplo que fica é o da serenidade institucional. O da lealdade silenciosa que não se rende a pressões nem se deixa usar como bastão político. Quando o militar permanece fiel à Constituição, ele reafirma seu lugar não como ator do conflito, mas como guardião da ordem.
E é justamente esse compromisso — discreto, firme e constitucional — que sustenta a democracia quando as palavras falham e os riscos se acumulam. Não é o grito que preserva a República, mas a compostura de quem compreende, em silêncio, o peso da farda e a leveza da legalidade.
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