PENSAMENTO PLURAL Fardas, farsas e a vergonha da anistia, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena pontua como “o Brasil vive um momento de vergonha institucional: parlamentares civis e militares, eleitos pelo voto livre, defendem anistia a golpistas que atentaram contra o Estado de Direito”. E ainda: “Sob o falso discurso da “reconciliação nacional”, buscam apagar crimes contra a democracia. Transformaram o patriotismo em pretexto e a farda em palanque. O perdão sem arrependimento é cumplicidade — e a história julgará essa traição à República.” Confira íntegra...

A democracia, em qualquer país, começa a ruir não apenas quando generais se metem na política, mas quando políticos — e militares travestidos de políticos — tentam reescrever a história para absolver os que atentaram contra ela. O Brasil vive, hoje, um desses momentos de risco e de indignidade. Depois de testemunhar a tentativa de instrumentalização das Forças Armadas e a explosão de um golpismo de redes e quartéis, o país agora assiste, perplexo, à vergonhosa mobilização parlamentar em favor da anistia daqueles que conspiraram e agiram contra o Estado de Direito.

O teatro da hipocrisia ganhou novos atores. Não bastam os civis que fingem ignorar o crime: há também militares da ativa que se elegeram sob o discurso de “lei e ordem”, jurando fidelidade à Constituição e à hierarquia, mas que hoje se tornaram apologistas e paladinos da impunidade. São oficiais que, no auge do bolsonarismo, marcharam ao lado do poder político e alimentaram a retórica do confronto; que, eleitos por votos civis, agora usam seus mandatos para defender a anistia daqueles que violaram a lei e atentaram contra o Estado Democrático de Direito. Em nome de um falso patriotismo, transformaram o uniforme em palanque e o silêncio institucional em cumplicidade ativa.

É o teatro da negação encenado sob luzes de plenário: deputados e senadores eleitos pelo voto livre, garantido por um sistema eleitoral moderno, auditável e seguro, pedem clemência para os mesmos que tentaram destruir esse sistema. E o fazem invocando o nome da “paz” e da “reconciliação nacional” — como se o perdão aos inimigos da democracia fosse um gesto de grandeza, e não uma traição silenciosa à memória das instituições que os levaram ao poder.

Não há maior contradição moral do que essa: defender a anistia de quem quis impedir eleições enquanto se usufrui do mandato conquistado exatamente por elas. É como cuspir no prato da legalidade e ainda exigir aplausos. Esses parlamentares — civis e fardados — ignoram que a Constituição de 1988, que lhes garante voz e voto, foi construída sobre os escombros de um regime que perseguiu, exilou e matou brasileiros em nome da “ordem”. Reabrir a porta do perdão para novos golpistas é, portanto, zombar da história e preparar o próximo assalto ao poder.

As artimanhas golpistas recentes — da invasão de prédios públicos ao incentivo a motins militares — não foram simples “excessos de manifestantes”. Foram ataques coordenados contra o princípio da alternância de poder, a base sagrada de qualquer democracia. E o mais grave é que parte dessa orquestração contou com o silêncio, o estímulo ou a cumplicidade de representantes eleitos — inclusive daqueles que usaram a farda como trampolim para a política e agora tratam a desobediência constitucional como bravura.

O Brasil precisa encarar esse momento com clareza moral. Não se trata de vingança, mas de justiça. Sem responsabilização, não há aprendizado; sem memória, não há democracia. A anistia ampla, irrestrita e oportunista que alguns defendem é, na prática, um convite à reincidência. Um salvo-conduto para o próximo aventureiro que decida desafiar a Constituição e conspirar contra o voto popular.

A alternância de poder — essa conquista que distingue repúblicas de regimes autoritários — não é um detalhe técnico: é o oxigênio da liberdade. Quando se tenta subverter esse princípio, seja com tanques, seja com teses jurídicas, mata-se o espírito da República.

Os parlamentares que hoje erguem a bandeira da anistia — especialmente aqueles que vestiram a farda para chegar ao poder — deveriam lembrar que a Foi o Estado de Direito que lhes garantiu candidatura, eleição, posse e salário. É o mesmo Estado que agora pedem licença para trair.

O perdão sem arrependimento é cumplicidade. E a história, implacável, saberá registrar os nomes — civis e fardados — de quem, em vez de defender o futuro, escolheu varrer o crime para debaixo da toga da impunidade.

 

Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.