PENSAMENTO PLURAL Fentanil, medos importados e o perigo de confundir drogas com terrorismo, por Palmarí de Lucena

A crise do fentanil nos EUA é frequentemente atribuída a cartéis latino-americanos, mas suas raízes estão no próprio sistema de saúde e no colapso regulatório que abriu espaço para opióides legais e, depois, ilegais, diz o escritor Palmarí de Lucena em seu comentário. “Classificar narcotráfico como “narcoterrorismo” é uma insensatez que distorce causas, legítima excessos e ameaça soberanias. Para o Brasil e a América Latina, o risco maior é importar medos alheios. A saída não é guerra, mas políticas de saúde, regulação e redução de danos”, completa. Confira íntegra…

A crise do fentanil nos Estados Unidos reacendeu uma narrativa que sempre retorna quando o país precisa de um inimigo externo para organizar suas inquietações internas. De repente, a América Latina é redesenhada como território de ameaças, cartéis onipotentes e fronteiras porosas, responsabilizada por envenenar o “coração da América”. A história é familiar: simples, emocionalmente confortável e politicamente útil. Mas, como todo enredo fácil, ela desvia o olhar do essencial, protege interesses oportunos e cria riscos desnecessários para países que não têm qualquer ligação com a origem do problema. 

A verdade é menos cinematográfica e muito mais incômoda. A epidemia de opioides nasceu dentro de casa, alimentada por anos de desregulação, marketing agressivo e milhões de pessoas vivendo entre dores físicas, emocionais e econômicas. Quando opioides potentes foram apresentados como soluções quase inofensivas, abriu-se o caminho para uma dependência em larga escala. E quando o governo entrou tarde demais em cena, restringindo prescrições e combatendo clínicas fraudulentas, o mercado ilegal simplesmente ocupou o espaço deixado pelo próprio sistema de saúde. O fentanil não surgiu como arma de um inimigo externo; floresceu nas fissuras institucionais dos Estados Unidos.

Nesse ambiente de medo e busca por culpados, ressuscita-se ciclicamente a ideia de rotular o narcotráfico como “narcoterrorismo”. O termo impressiona, dá sensação de força, mobiliza pânicos e legitima discursos de guerra. Mas é um equívoco profundo. Terrorismo se orienta por ideologias e objetivos políticos; narcotráfico se move pelo lucro e opera como mercado. Confundir ambos gera um borrão conceitual que autoriza exceções jurídicas, estimula intervenções extraterritoriais e abre brechas para ações militares travestidas de cooperação internacional. Não protege vidas; protege conveniências. Não esclarece; embaralha. E, ao embaralhar, fragiliza o Estado de Direito.

Classificações imprecisas sempre cobram preço alto. Quando traficantes passam a ser tratados como terroristas, tornam-se admissíveis operações militares em territórios alheios, instrumentos de exceção aplicados a problemas de saúde pública e políticas que transformam comunidades inteiras em suspeitas. A América Latina conhece bem esse repertório. A região tem sido palco de estratégias que confundem repressão com solução e que, em vez de enfrentar causas estruturais, apenas multiplicam violência e deslocamentos. A retórica do narcoterrorismo não ilumina a realidade; ela a distorce — e, ao fazê-lo, legitima decisões que sacrificam vidas sem resolver o problema.

Embora o Brasil ainda não enfrente uma epidemia de fentanil, não está imune ao contágio narrativo. Importamos medos com rapidez surpreendente: aquilo que inquieta os EUA, em pouco tempo, molda manchetes e debates nacionais. E soluções improvisadas lá costumam virar pressões políticas aqui. O risco maior não é a chegada do fentanil — ao menos ainda não — mas a adoção apressada do imaginário da guerra, que reduz a complexidade a slogans e substitui diagnósticos sérios por imitações tropicais de pânicos estrangeiros. Poucos países pagaram preço tão alto pela militarização da política de drogas quanto o Brasil, e mesmo assim esse impulso continua à espreita.

É preciso insistir no óbvio: as políticas eficazes raramente são espetaculares. Elas envolvem regulação firme de opioides legais, tratamento acessível e contínuo para dependentes, educação honesta, testagem de substâncias, limites ao marketing farmacêutico e medidas de redução de danos. São políticas silenciosas, técnicas, sem glamour militar ou efeitos cinematográficos. Não rendem discursos inflamados, mas salvam vidas. Reconhecem que drogas não são demônios, mas mercadorias de alto risco; e que dependência não é falha moral, mas condição humana que exige cuidado e responsabilidade.

A tentação de transformar drogas em inimigos existenciais não busca resolver problemas — busca fugir deles. É sempre mais fácil imaginar que o mal vem de fora do que encarar os próprios fracassos. Mas quando o medo pauta decisões e exceções viram método, sociedades perdem não apenas a clareza, mas também a capacidade de construir respostas maduras.

O verdadeiro risco para o hemisfério não está nas substâncias em si, mas nas escolhas políticas feitas sob o calor do pânico. Quando a resposta é guerra, o resultado é sempre mais sofrimento, mais violência e mais ilusões. Quando a resposta é política pública séria, lenta e humana, emergem as únicas soluções que têm chance de durar. No fundo, a crise das drogas não se resolve com mísseis, metáforas ou novos rótulos. Resolve-se com lucidez — e lucidez, neste tema, significa recusar fantasmas e enfrentar o que realmente importa: salvar vidas antes que o medo decida por nós.

 

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