
O cineasta Durval Leal Filho discorre em seu texto com o avanço da IA (Inteligência Artificial), que tem permeado o debate da modernidade, e cita como a ferramenta tem sido utilizada até para compor músicas. “A inteligência artificial, sobretudo na sua forma generativa, provoca fascínio porque parece fazer tudo”, diz Durval, mas acrescenta: “Mas há algo fundamental que não pode ser esquecido: ela precisa do ser humano para definir o rumo.” Confira íntegra...
“As coisas estão no mundo Só que eu preciso aprender…” Essa frase, simples e insistente, retorna sempre que tento compreender um samba de Paulinho da Viola; nele, ele não ensina apenas música, ensina uma forma de estar no mundo, de escutar, de respeitar o tempo das coisas e das pessoas.
Não se trata apenas de aprender a melodia, a harmonia ou a letra, mas de enfrentar a pergunta mais difícil que o samba coloca de forma silenciosa: como se aprende? Em certos momentos, tornase até desnecessário saber exatamente onde se está, porque o aprendizado verdadeiro desloca, tira o chão, suspende a certeza do lugar.
No dia 13 de dezembro de 2025, em João Pessoa, vivi um encontro que materializou essas reflexões. Foi um momento raro de aprendizado coletivo, reunindo dois jovens professores paraibanos, Carlos Bidu, do Departamento de Informática, e Marcílio Onofre, do Departamento de Música, sob a apresentação de Guido Lemos Filho, estudioso magistral, cuja trajetória confunde-se com a própria história da tecnologia e da cultura digital no Brasil, a mediação e realização foi de Walter Santos, jornalista irrequieto e empreendedor ousado da mídia paraibana, CEO do WS.Com.
Como convidado e debatedor, estava Wilson Souto Júnior, aos 73 anos, um personagem fundamental da música brasileira contemporânea. Nos anos 1980, Wilson criou e reinventou a chamada “Vanguarda Paulistana” a partir de um selo da Continental, abrindo espaço para uma música urbana, experimental e profundamente autoral. Trabalhou com Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Luiz Tatit, Tom Zé e tantos outros que desafiaram as formas tradicionais da canção brasileira. Sua trajetória mostra que inovação não nasce do acaso, mas da criação de espaços de escuta e circulação.
O tema do Encontro era a inteligência artificial, com foco direto na música, mas o debate rapidamente ultrapassou os limites técnicos e entrou no campo ético, estético e político.
Essa experiência de aprendizado me levou, quase naturalmente, à reflexão sobre a era da inteligência generativa. O que ela gera, afinal? Que tipo de inteligência está sendo produzida? Que conhecimento é efetivamente construído? Quais padrões cognitivos estão sendo organizados e reforçados?
A inteligência artificial, sobretudo na sua forma generativa, provoca fascínio porque parece fazer tudo: muda rotas, redistribui conteúdos, combina informações, cria respostas, elimina caminhos e propõe outros. Mas há algo fundamental que não pode ser esquecido: ela precisa do ser humano para definir o rumo, o segmento, o produto, o lugar, o sentido. Sem isso, não há direção, apenas repetição sofisticada.
A palavra “generativo” precisa ser tratada com cuidado. Generativo não é criar no sentido pleno da criação humana. Não é o gesto inaugural, nem o salto no escuro. Generativo é gerar a partir de um estoque de conhecimentos existentes, abstrair padrões, reorganizar informações, refletir a partir de pressupostos que foram dados. O problema é que estamos, pouco a pouco, perdendo a referência desses pressupostos lógicos. O que conhecemos? O que perguntamos? O que, de fato, desenvolvemos? Quando essas perguntas desaparecem, o uso da inteligência artificial se torna automático, acrítico e perigoso.
A IA é, ao mesmo tempo, uma ferramenta crítica, analítica, afetiva e assertiva, mas apenas porque opera a partir de parâmetros que nós mesmos sugerimos. Ela determina respostas conforme os limites que lhe são impostos. Se o sujeito que pergunta é frágil, se não acredita no que pergunta, se não sustenta uma ética mínima do conhecimento, o resultado será igualmente frágil. A tecnologia não corrige a pobreza conceitual de quem a utiliza. Pelo contrário, ela a amplifica. Por isso, a pergunta essencial não é o que a IA faz, mas como ser crítico diante do generativo. Essa pergunta precisa continuar sendo feita, repetida e aprofundada, para que a tecnologia não se transforme em um instrumento de perda ética, de superficialidade e de falsa verdade.
O que Wilson percebeu, e defendeu com clareza, é que a IA é feita por pessoas, “exclamou EVOÉ para IA”. Chamou a atenção que são os espaços que fazem a dinâmica da música. Espaços pequenos, palcos modestos, grupos reduzidos, pequenas orquestras. É aí que se dá a interseção do conhecimento musical. Toda arte é feita de interseções. O cineclube, por exemplo, não é apenas um lugar de exibição, mas um espaço de formação do olhar. A plateia aprende a perceber uma nova linguagem, um novo ritmo, um novo sentido.
A música vai ainda mais longe, porque ela não se limita às sensações imediatas. Ela atravessa o corpo, a memória, a cultura e o tempo. No contexto atual, discute-se muito a inovação tecnológica na música: aplicativos, plataformas, ferramentas de criação. Mas tudo isso é efêmero se não houver sentido. A música não se acomoda; ela resiste, se transforma, desloca.
A discussão avançou, então, para a questão ética do criador e da criatura. A inteligência artificial, enquanto criatura técnica, não cria. Ela gera. Tudo está além do criador, mas muito mais dentro da criatura que pergunta, age e escolhe.
Nesse ponto, surgiu uma ideia provocadora: a música é quântica. Não no sentido técnico da física, mas no sentido profundo da criação. Não é generativa, é criadora. Ela opera por saltos de sentido, por relações invisíveis, por afetos que não se deixam capturar por algoritmos. Música é sentido, é a relação entre comportamentos, percepções, memória e experiência humana. Ela não nasce da soma de dados, mas da escuta e da pergunta ao tempo.
O risco contemporâneo é inverter essa relação, atribuindo à IA um poder que ela não tem e retirando do humano a responsabilidade que lhe cabe. Criticar a inteligência artificial não é negá-la, mas compreendê-la. É reconhecer sua importância, seus limites e, sobretudo, a necessidade de pensamento crítico diante do desconhecimento que ainda a cerca. Sem isso, não aprendemos o samba, nem o mundo.
À PAULINHO DA VIOLA CARPINTEIRO DE SAMBAS.
CONFIRA VÍDEO DE PAULINHO DA VIOLA…
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