Na sacada da Basílica de São Pedro, ao saudar os fiéis com um “A paz esteja convosco”, o novo Papa marcou a história. Leão XIV é o primeiro norte-americano a assumir o trono de Pedro — mas sua origem vai além da nacionalidade. Ele também carrega uma herança que une coragem, fé e invisibilidade: raízes crioula de cor vindas da Nova Orleans do início do século XX.
Segundo o genealogista Jari C. Honora, Robert Francis Prevost descende de uma família que, antes da Guerra Civil americana, já era composta por “pessoas livres de cor”. Seus avós maternos, Joseph e Louise Martinez, foram registrados como negros no censo de 1900. Ele, nascido no Haiti, trabalhava como fabricante de charutos. Viviam no bairro Seventh Ward, conhecido pela mistura cultural.
Quando se mudaram para Chicago, por volta de 1910, cruzaram silenciosamente a linha da cor. “Passaram para o mundo branco”, explica Honora — uma estratégia comum de sobrevivência num tempo em que os direitos dos negros livres haviam sido apagados com o fim da escravidão.
O irmão do Papa, John Prevost, confirmou a pesquisa. Disse que a família não discutia o assunto. “Nunca foi um problema”, resumiu.
Mas o silêncio dessa ancestralidade diz muito. E talvez tenha ajudado a moldar um Papa atento às dores dos que são deixados à margem. Leão XIV não falou sobre esse passado, mas escolheu um nome que carrega símbolos fortes.
Leão é um nome raro entre papas. O último foi Leão XIII, que reinou até 1903 e é lembrado por ter dado voz aos trabalhadores em tempos de injustiça social. Foi ele quem publicou a encíclica Rerum Novarum, defendendo direitos diante das feridas da Revolução Industrial. Segundo o Vaticano, o novo Papa escolheu esse nome como um chamado à dignidade do trabalho na era da inteligência artificial. Um gesto que atualiza a missão social da Igreja para o século XXI.
A inspiração também vem do século V. Leão I, o Grande, enfrentou Átila, o Huno, e o convenceu a recuar. A cena, pintada por Rafael, mostra um Papa desarmado, guiado apenas pela fé. Uma imagem que ressurge agora, num tempo em que o diálogo precisa ser mais forte que o confronto.
Em sua primeira aparição, Leão XIV falou pouco — mas com clareza. Relembrou a saudação de Cristo ressuscitado e homenageou o Papa Francisco, “cuja voz ainda se ouve, fraca mas corajosa”.
O novo Papa tem nome de leão, mas caminha com suavidade. Traz na alma a força de quem veio do sul das lutas e na palavra a ternura de quem sabe ouvir. É, talvez, o sinal de que a Igreja ainda pode mudar — unindo tradição e diversidade, fé e justiça.
*Imagem acima: A tela O Encontro de Leão Magno com Átila, criado por Rafael Sanzio entre 1513 e 1514.
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