PENSAMENTO PLURAL Médicos, máquinas e o risco da desaprendizagem: uma reflexão ética, por Palmarí de Lucena

A inteligência artificial seduz pela precisão, mas traz riscos sutis. Médicos experientes já mostram sinais de desaprendizagem ao depender dela. Se a máquina erra, quem garante o paciente? A tecnologia amplia horizontes, mas não substitui consciência nem responsabilidade. O desafio é ético: preservar o olhar humano sem ceder à tentação de terceirizar a essência da medicina. Esse o tema do comentário do escritor Palmarí de Lucena. Confira íntegra…

A inteligência artificial irrompeu na medicina como uma promessa de precisão e eficiência. Sistemas que detectam tumores, sinalizam riscos ou aceleram diagnósticos já se mostraram capazes de salvar vidas e otimizar recursos. O entusiasmo é compreensível: a máquina não se distrai, não se cansa, não se abala pela fadiga de plantões sucessivos. Contudo, um estudo europeu recente trouxe à tona uma inquietação: médicos experientes, após meses utilizando softwares que destacavam em tempo real lesões pré-cancerígenas, tornaram-se menos eficazes quando precisaram trabalhar sem a ajuda digital.

Esse fenômeno, conhecido como “desaprendizagem”, não é estranho a outras áreas. Pilotos, diante do piloto automático, já foram obrigados a treinar continuamente para não perder as habilidades de voar manualmente. Mas na medicina, a questão adquire contornos éticos mais profundos. Afinal, se a inteligência artificial falha, quem garante a segurança do paciente quando o médico já não mantém pleno domínio de suas capacidades diagnósticas?

Aqui emerge uma primeira pergunta filosófica: pode um profissional renunciar a parte de sua arte em nome da eficiência da máquina, mesmo que os resultados imediatos pareçam superiores?

A situação torna-se ainda mais delicada na formação das novas gerações. Se médicos com décadas de prática sofrem declínio de desempenho em poucos meses de dependência digital, o que esperar de estudantes que, desde o início, já se apoiam em sistemas inteligentes? Estaríamos criando uma geração de profissionais que jamais consolidará plenamente as competências fundamentais? Esse risco, apelidado por alguns de never-skilling, é talvez mais preocupante do que a simples erosão de habilidades.

Nesse ponto, outra questão se impõe: qual o papel da educação médica em um mundo cada vez mais mediado por algoritmos? Formar operadores de máquinas ou guardiões do saber clínico?

Não se trata de negar a revolução digital, nem de retroceder a um romantismo nostálgico em que apenas o olhar humano bastaria. A IA pode democratizar diagnósticos, reduzir desigualdades no acesso à saúde e oferecer uma segunda opinião onde faltam especialistas. Mas é preciso reconhecer seus limites. Algoritmos são treinados com dados de um determinado momento histórico; mudam as condições, mudam também os resultados. Pequenas variáveis — da iluminação do ambiente até a qualidade do equipamento — podem comprometer a precisão. Quem corrigirá tais falhas se o médico tiver perdido a capacidade crítica?

A filosofia sempre lembrou que o ser humano é um ser de responsabilidade. Nenhum algoritmo, por mais sofisticado, carrega consigo a dimensão moral da decisão diante da vida. A máquina pode calcular probabilidades, mas não responde à pergunta essencial: “devo ou não devo agir assim diante deste paciente?”

O risco ético da dependência, portanto, não se resume à técnica, mas à própria essência da medicina como prática humana. Se o profissional abdica de sua autonomia, transfere também ao sistema uma responsabilidade que ele jamais poderá delegar. O paciente confia não em uma equação estatística, mas em uma consciência que sabe decidir.

A saída parece estar no equilíbrio. Algumas universidades já discutem limitar o acesso à IA nos primeiros anos de formação, para que o aprendizado das habilidades clínicas seja sólido. Outras investem em simulações, treinando médicos a realizar procedimentos sem apoio digital, a fim de preservar sua autonomia diagnóstica. É preciso garantir que a máquina seja parceira, nunca substituta; ferramenta, não muleta.

Por fim, cabe perguntar: será a inteligência artificial um espelho que amplia nossas capacidades ou um véu que obscurece nossa visão? A resposta depende menos da tecnologia em si e mais da maneira como decidirmos usá-la. O futuro da medicina não estará em escolher entre homem ou máquina, mas em tecer uma convivência vigilante, capaz de unir a precisão algorítmica à sensibilidade humana.

Porque, em última instância, a medicina continuará a ser, antes de tudo, um encontro entre consciências: a do paciente que confia e a do médico que responde com ciência, ética e humanidade.

 

Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.