PENSAMENTO PLURAL Mudanças e miragens, por Palmarí de Lucena
Houve um tempo em que paisagem era outra. Havia cajus, cocos à beira mar, guajirus, sardinhas, farinha e café. Mas, para o escritor Palmarí de Lucena, essas são caras reminiscências que se perderam no passado, suplantadas pela miragem de plástico e concreto que cobrem o horizonte no presente. Confira a íntegra de seu texto…
Cajus fermentando na areia quente, odor inebriante contrapondo-se à maresia enfadonha. Pássaros, saguis e meninos disputando freneticamente os últimos frutos da safra. Estrídulos, guinchos e gritos. Pedras atiradas a esmo. Coqueiro contorcido, sombra que parecia tocar nas ondas, ilusão de ótica. Acampados na praia do Cabo Branco, anoitecer do primeiro dia de Carnaval. “[…] Ra-ta-plan!/Do arrebol,/Escoteiros, vede a luz!”. Silêncio súbito, contemplávamos as estrelas penduradas no céu.
Transitando ruidosamente na estrada de barro, picape sobrecarregada de cocos verdes, quebrando a paz da noite enluarada. Emergindo na penumbra, dois vultos movendo-se cautelosamente em nossa direção. Depositaram cocos na areia, desculpando-se pela intromissão. O veículo desapareceu na curva da estrada. Carnaval, calor e suor esperavam os frutos da sua carga.
Animados, acordamos cedo. Café de vaqueiro passado no coador, sanduíche de viandada e bolachas, nossa única concessão à culinária. Começamos a pescar bem cedo, com equipamento e iscas rudimentares como ditava o manual do escoteiro. Luta infrutífera, soma zero. Menos mal, ninguém sabia cozinhar ou mesmo limpar pescado. Exaustos e esfomeados, optamos pelos frutos da terra. Cajus, nata de coco e guajirus, regados com água de coco. Sobrevivemos precariamente.
Resumimos a caminhada. Praia da Penha nosso próximo destino. Cansaço, calos e fome nos acompanharam. Subimos a barreira penosamente, o peso das mochilas se fazia presente. Na mata atlântica, o vento do oceano soprando timidamente. Nosso oásis, água fresca e cristalina do Rio do Cabelo. Sardinhas, farinha e café. Última lembrança.
Ondas castigando as pedras, ameaçando o que restara da estátua da Rainha do Mar. Sacos e garrafas de plástico, pedaços de madeira, espalhados na areia. Adolescentes em skates, patinetes, ambulantes, às vezes ciclistas, competiam com nossos pés cansados. Finalmente a nossa esquina. Quatro adolescentes, catadores de lixo, desfrutando um momento de lazer jogando pedras nos frutos de um cajueiro frondoso. Esfomeados, carrocinhas vazias. Saguis e passarinhos observando de fios elétricos e antenas de televisão. Tudo havia mudado, miragens de plástico e concreto cobriam o horizonte.
(foto: reprodução da Praça de Iemanjá – Google Maps 2020)
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