PENSAMENTO PLURAL Não era um problema nosso, por Rui Leitão
Em sua crônica, o escritor e historiador Rui Leitão observa como, em meio à iminente realização da Copa América no Brasil, a impressão que o País estaria “vivendo um momento de absoluta tranquilidade”, diante da lógica que permitiu a realização do torneio. Rui revela que acompanha com interesse o desenrolar de outros campeonatos, mas “corre que esses certames já estavam previstos no nosso calendário esportivo há muito tempo”. Confira a íntegra do seu comentário…
A impressão que se tem é que estamos vivendo um momento de absoluta tranquilidade no país. Nem parece que temos uma estatística macabra de quase quinhentas mil mortes de brasileiros provocadas pela pandemia da covid-19. Se não temos com que se preocupar, porque não procurar assumir problemas que não são nossos? Essa tem sido a logica da pressa com que o governo federal respondeu ao apelo da Commebol para aqui sediar a Copa América, nos deixa com a sensação de que já vencemos a crise sanitária que nos tem trazendo muita inquietação.
Antes quero dizer que o futebol é uma das minhas paixões. E tenho acompanhado com interesse e entusiasmo o desenrolar dos campeonatos nacionais e das eliminatórias da copa do mundo. Ocorre que esses certames já estavam previstos no nosso calendário esportivo há muito tempo. Houve tempo bastante para que fossem planejados e adotadas as medidas preventivas sanitárias para minimizar riscos de transmissibilidade do vírus. Porém nunca poderemos deixar de reconhecer que existe o perigo de contaminação, ainda que sejam praticados os cuidados recomendados pela ciência e a medicina. Se me perguntassem se concordo com a realização desses jogos, eu diria que não.
A pergunta que se faz é, a troco de que tomarmos a iniciativa de agregarmos mais um problema aos tantos outros que já temos? Qual o benefício dessa competição esportiva para a sociedade brasileira? Não haverá incremento ao turismo, nem produzirá adicional à nossa economia. Fica, inquestionavelmente, a suposição de que se trata de uma jogada política diversionista.
Não quero criticar a posição tomada pelos jogadores da nossa seleção. Imagino o quanto fica difícil para eles se negarem a cumprir uma decisão política determinada pelo presidente da república, ainda que o evento seja promovido por instituições privadas. Não é a primeira vez que se pretende misturar interesses políticos com atividades esportivas que emocionam o grande público. No governo do ditador Médici essa intervenção indébita do governo causou a demissão do então técnico João Saldanha na copa do mundo de 1970.
O que trago à reflexão é a inoportunidade da sua realização. Como explicar que outros países com situação menos dramática do que a nossa se negaram a sediar o campeonato e nós nos oferecemos para fazê-lo, faltando menos de quinze dias para o seu início? Poderemos ser vítimas de uma improvisação que gerará, certamente, potencialização dos riscos a que a população e os jogadores serão submetidos. A questão é polêmica, mas não me exime de manifestar o que penso a respeito, mesmo considerando as divergências.
Irei sim, torcer por nossa seleção, com a mesma euforia de sempre. Embora evitando vestir a camisa verde amarela da CBF, porque ela foi apoderada para simbolizar uma posição político-ideológica com a qual não concordo. Vou vibrar a cada vitória conquistada e comemorarei efusivamente se conquistarmos o título de campeão. Contudo, isso não fará com que me afaste do acompanhamento das discussões sobre o momento político que vivemos, não só em relação à forma como está sendo tratada a pandemia, mas, principalmente, quanto aos movimentos recorrentes que ameaçam a nossa democracia.
Refletir sobre tudo o que possa repercutir na vida cidadã brasileira é um direito que jamais abrirei mão. É claro que deve ter muita gente que não comunga com meu pensamento a respeito. Porém, democraticamente, continuarei me colocando como protagonista de um debate que interessa a todos independentemente das preferências políticas e ideológicas.
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