
Em tom irônico e contido, o texto do escritor Palmarí de Lucena contrapõe o esforço cotidiano do contribuinte brasileiro ao ritual orçamentário do Congresso no fim do ano. A metáfora do Natal expõe a distribuição abundante de verbas, benefícios e fundos a parlamentares, partidos e lideranças, muitas vezes dissociada da presença e da responsabilidade pública. “Fora da cena festiva, resta ao cidadão financiar o espetáculo em silêncio, enquanto a repetição do método substitui qualquer magia institucional”, diz. Confira íntegra...
Enquanto milhões de brasileiros tentavam fechar o ano equilibrando contas domésticas com a precisão de quem monta um presépio incompleto, o Congresso Nacional celebrava seu próprio Natal. A árvore institucional, bem iluminada, não exibia enfeites frágeis nem luzes econômicas. Pendiam dela verbas, emendas, auxílios e reajustes — todos cuidadosamente embrulhados em linguagem constitucional, com selo de normalidade administrativa e carimbo de urgência.
Sob essa árvore, os presentes se acumulavam com abundância nórdica e fiscalização tropical. Havia pacotes generosos destinados à chamada “atividade parlamentar intensa”, expressão que, na prática, costuma significar deslocamentos frequentes, baixa presença deliberativa e votações concentradas quando o calendário permite. Em caixas menores apenas no volume físico — jamais no impacto fiscal — vinham os benefícios logísticos: combustível, moradia funcional, equipes numerosas. Tudo indispensável para quem sustenta o peso do país, ainda que raramente esteja presente para senti-lo.
Um aspecto revelador desse ritual é que parte dos contemplados sequer compareceu à própria celebração legislativa. Deputados ausentes receberam seus benefícios com rigorosa pontualidade. Não estavam no plenário, não participaram das comissões, não contribuíram para o debate — mas constavam na folha. O Natal institucional prescindiu da presença: bastou existir formalmente e manter os dados atualizados.
Mais ao fundo, longe do olhar do eleitor comum, estavam os pacotes coletivos, endereçados aos partidos. Fundos partidários e eleitorais, repasses automáticos e correções generosas compunham esse lote. Não exigiam coerência programática, fidelidade ideológica nem desempenho mínimo. Bastava ter sigla, CNPJ e a habilidade histórica de sobreviver a qualquer estação política.
Havia ainda os presentes reservados às lideranças partidárias. Não vinham identificados por nomes, mas por funções: “articulação”, “governabilidade”, “liderança”. São benefícios menos visíveis, porém decisivos. Quem controla o estoque raramente ocupa a vitrine — e, quando o faz, chama isso de responsabilidade institucional.
Nesse cenário, a metáfora é inevitável. Se o presidente da Câmara exerce o papel de Papai Noel do Congresso, as renas não puxam trenós: puxam quórum, orçamento e silêncio. Não seguem estrelas, seguem planilhas. Algumas correm em formação; outras aparecem apenas quando convocadas; há as que dominam o ritmo e decidem quando o trenó anda ou permanece estacionado.
O saco de presentes é amplo na distribuição e rigoroso na cobrança seletiva. Cabe quase tudo: emendas, fundos, cargos, recesso prolongado e o fenômeno da ubiquidade remunerada. Tudo acompanhado por discursos solenes sobre responsabilidade fiscal — invariavelmente pronunciados depois da entrega.
Do lado de fora, o contribuinte também participa do ritual. Deixa aos pés da árvore um pacote invisível, embrulhado em impostos, tarifas e inflação. A etiqueta é simples: “Pago em silêncio”. Não exige recibo. Aprendeu que, no Brasil, a reciprocidade raramente integra o orçamento simbólico do poder.
Para completar a cena, bastaria um detalhe decorativo: um pote de tinta escura ao lado da árvore. Não para pichar, mas para cobrir. Com uma demão rápida, desaparecem ausências, diluem-se responsabilidades e o auto se transforma em política pública. O custo, como sempre, fica fora do enquadramento.
E assim se encerra o auto de Natal brasiliense — uma comédia de costumes em que ninguém precisa decorar o texto, porque todos conhecem a deixa. Se houver crítica, será tratada como ruído técnico. Se houver silêncio, como sinal de maturidade democrática. No ano seguinte, tudo se repete: novos embrulhos, a mesma árvore e o mesmo presépio administrativo.
Moral discreta, mas persistente: no Polo Norte, as renas voam por magia; em Brasília, por método.
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